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Herança

Publicado: 03 Março, 2023 - 00h00

Em 2020, dos 31,6 milhões de brasileiros que declararam IRFP, apenas 0,5% dos herdeiros, exatamente 1.925 pessoas, receberam 36,5% de todo recurso herdado

Para a grande maioria dos brasileiros com pouco ou nenhum patrimônio, a educação, formal ou informal, é o bem mais precioso que pode ser deixado para os filhos. Para uma minoria, a herança vai muito além da educação e reflete e reforça a desigualdade existente no país.

E esse é um dos grandes desafios do Brasil, país onde, em 2020, metade da herança foi para um seleto grupo de 4,1 milhões de declarantes de Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF). Isso significa que 13% do total de contribuintes receberam receita a título de “lucros e dividendos” no ano de referência. Na declaração de 2020, foram informados R$ 61,7 bilhões entre os que preencheram o formulário completo, e R$ 48,7 bilhões entre os que utilizaram o simplificado.

Mesmo antes de detalhar as declarações entregues à Receita Federal nos últimos anos, é possível afirmar que o aumento das alíquotas de imposto sobre herança, quem sabe com a criação de um imposto nacional em adição aos estaduais já existentes, poderia ajudar o Brasil na tarefa de reduzir as desigualdades e distribuir renda à população menos favorecida, aquela que só vai deixar a educação como herança para os filhos, taxada injustamente pela Receita Federal.

Um aumento da alíquota para 30%, próxima a do Chile, e apenas sobre os que ganham acima de 5 milhões de herança teriam rendido cerca de R$ 10 bilhões extras aos cofres públicos, não paga o incremento do Bolsa Família para R$ 600, mas ajuda os que mais precisam.

É uma minoria, mas declara bilhões de reais

Nos últimos seis anos, os brasileiros declararam à Receita federal ter recebido mais de R$ 723 bilhões em herança, incluindo os dados de 2020 já citados. Além da herança e doação recebida nesses seis anos, os contribuintes declararam também R$ 150 bilhões em doações em espécie e R$ 58 bilhões em doações de bens e direitos para terceiros. 

É importante ressaltar que só uma minoria de brasileiros declara o IRPF. Só precisa declarar a pessoa que teve rendimento tributário acima de R$ 28.559,70 ou receita bruta de atividade rural acima de R$ 142.798,50 ou posse/propriedade de bens ou direitos com valor total acima de R$ 300 mil. Aposentados com rendimento de aposentadoria de até R$ 24.751,74 por ano estão isentos do pagamento, mas não da declaração.

Mesmo os contribuintes isentos do imposto sobre herança, que no Brasil é estadual e varia de 0% a 8%,  são obrigados a declarar herança desde que se os valores sejam superiores a R$ 40 mil.

Os dados da Receita Federal referentes ao IRPF de 2020 mostram ainda que dos 31,6 milhões de declarantes, apenas 1,3% declararam ter recebido doações e herança, somando pouco mais de R$ 110 bilhões.

A Receita Federal detalha as informações sobre o montante declarado, permitindo que o país saiba um pouco mais sobre os herdeiros, ao classificar os declarantes por faixa de valor da doação ou herança recebida.

A grande maioria ou 91,9% dos 396 mil herdeiros, declarou ter recebido até R$ 500 mil, totalizando 30,3% do recurso herdado em 2020. Os outros 32.139 mil herdeiros ficaram com os 69,7% restantes recebidos como doação ou herança no mesmo ano.

Os declarantes na primeira faixa de até R$ 50 mil, representando 36,3% do total, ficam com 3,3% das heranças.

Na última faixa, acima de 5 milhões, o país tem apenas 0,5% dos herdeiros, exatamente 1.925 pessoas que receberam 36,5% de todo recurso herdado.

No ano anterior, em 2019, este seleto grupo contou com 1.656 pessoas, que levaram em média R$ 39 milhões em herança. Sem descontar a inflação, este valor é 86% maior do que o recebido em 2020. Os obituários de 2019 talvez deem uma pista, mas não é o lado tétrico da questão que interessa.

Se fosse possível abrir o decil deste grupo veríamos a desigualdade que separa os milionários dos bilionários, e isso talvez explicasse uma parte do salto nos valores. Não é possível, mas, como já disse e vale repetir, outros recortes mostraram que metade da herança do país foi para um grupo de 4,1 milhões privilegiados.

Em 2020, paulistas herdaram R$ 63,4 bilhões

A análise sobre o estado mais rico do país, mostra que São Paulo tem 9 das 10 ocupações de declarantes que receberam maior volume de herança, a principal é formada por “dirigentes, presidentes e diretores de empresas”, totalizando R$ 21,68 bilhões. O Rio de Janeiro fica em nono, representado pela ocupação “não informado”, ou talvez desocupado ou herdeiro?

Gráfico 1 – Imposto sobre Heranças e Doações Recebidos em 2020 no Brasil.

Fonte: Receita Federal. Elaboração própria.

Voltemos a São Paulo, estado que concentra 32% dos declarantes de IRPF do país e 57% das doações e heranças recebidas em 2020: os paulistas herdaram R$ 63,4 bilhões.

O estado também lidera o ranking de maior concentração de patrimônio declarado, com R$ 4,6 trilhões ou 41% de todos os R$ 11,13 trilhões em bens de direitos declarados no IRPF.

Ranking das cidades onde vivem mais herdeiros

Os dados da Receita Federal permitem ainda saber as cidades onde vivem os grandes herdeiros brasileiros.

Em 2020, das cinco maiores heranças “médias” declaradas, três foram em cidades no interior de São Paulo, que ficou em primeiro lugar, com Campos do Jordão, em segundo com Pontal e em quinto com Gavião Peixoto. O terceiro lugar do ranking ficou com  Douradina (PR) e o quarto com Castelândia (GO).

Gavião Peixoto e Douradinha talvez sejam os casos mais pitorescos, por contarem com poucos declarantes e massas expressivas de riqueza média declarada, respectivamente R$ 3,5 milhões e 1,6 milhões.

A arrecadação média com o ITCD no país triplicou do decênio de 2002 a 2011 para o que se estende de 2012 a 2021, chegando a 0,4% da receita tributária total. A média dos 38 países da OCDE é de 4,7% do PIB, e um estudo mostra que entre os 24 principais representa cerca de 0,53% da arrecadação total.[1] Este movimento reflete em parte o aumento das alíquotas por alguns estados, como os que ocorreram no Rio de Janeiro e em Pernambuco, em 2016. No ano de 2020 a arrecadação foi de R$ 8,5 bilhões, similar a dos anos anteriores, mas em 2021 “saltou” para R$ 12,3 bilhões talvez por conta da pandemia.

Como as heranças são taxadas em outros países

Poucos países não taxam as heranças. Entre eles estão a Áustria, a Noruega e a Suécia.

Na maior parte há taxação progressiva e em alguns casos com limites altos de isenção.

Os países com as maiores alíquotas máximas são a Bélgica (80%), Dinamarca (52%), Japão (55%); Coreia do Sul, Suíça e Alemanha, os três com alíquota de 50%; França (45%); EUA, Holanda e Grécia, com 40% cada. Na Espanha, a alíquota superior é de 34%, em Portugal 20%. Já na Itália é de 8%, como no Brasil.

Apesar de representar uma parte menor da arrecadação, o imposto sobre herança tem grande importância, a ponto da OCDE em seu relatório de 2021 ter afirmado que “Inheritance, estate and gift taxes could play a stronger role in addressing inequality and improving public finances”. Em bom português, a OCDE disse foi o que defini no início deste texto como um dos grandes desafios do Brasil na gestão do presidente eleito, Lula (PT), que tem início em 1º de janeiro de 2023.

“Os impostos sobre heranças, propriedades e doações podem desempenhar um papel mais forte no combate à desigualdade e na melhoria das finanças públicas”.

Recentemente Thomaz Picketty lançou na França a ideia da “herança para todos”, paga aos 25 anos para todos os cidadãos ao custo bruto de 5% do PIB, como forma de atacar a pobreza e a desigualdade.

Os que acham que isso reduziria o incentivo para o trabalho parecem estar cegos para o que ocorre nos países com alíquotas altas, como os EUA de Steve Jobs ou Bil Gates. Sem dúvida as regras da receita norte-americana, que permitem aos superricos fugir do imposto doando parte de suas fortunas para fundações, que depois serão geridas pelas próprias famílias, ajudaram bilionários como Jobs e Gates a aderir a “cultura da doação”.

Já os Onassis agradecem e retribuem as regras da Grécia com sua “Foundation”.

A cultura se ampara em boas leis e o exemplo norte-americano pode servir de lição para o Brasil que pode adotar regras como a dos EUA, onde ninguém deixa de trabalhar ou empreender, prosperar e dividir um pouco da riqueza com os menos privilegiados, aqueles que recebem no máximo educação informal e, também por isso, têm dificuldades de conseguir boas colocações no mercado de trabalho e conquistar remunerações melhores. Aqueles que nada receberam de herança e nada vão deixar  para as futuras gerações, exceto uma vida de privações de luta pela sobrevivência.

O governo que assumirá em 2023 pode acabar com a herança maldita de mais de 500 anos taxando as heranças milionárias como fazem vários países do mundo com comprovado sucesso.

 

Alexandre Ferraz

 

[1] https://www.oecd.org/newsroom/inheritance-estate-and-gift-taxes-could-play-a-stronger-role-in-addressing-inequality-and-improving-public-finances.htm