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Artigo

Novas e velhas roupagens do racismo nacional

Publicado: 21 Março, 2022 - 00h00 | Última modificação: 21 Março, 2022 - 14h06

É  notório que nos últimos anos muitas pautas de combate ao racismo avançaram no Brasil de forma a tornar a sua compreensão cada vez mais presente entre instituições do poder público e grandes empresas do setor privado.

Entretanto, tal avanço não foi acompanhado da diminuição de situações de violência racial, cuja miscelânea sempre surpreende; passando da tortura, indo a piadas de mal gosto, e culminando, não raramente, na morte de milhares de negros e negras brasileiros.

Falar que o racismo no Brasil está aumentando significa dizer que mais pessoas estão sendo vítimas de violência racial ou que a percepção geral das pessoas está mais atenta às práticas racistas?

Ambas as hipóteses são válidas.  O acesso assegurado politicamente das minorias negras e periféricas aos espaços de produção do conhecimento, aliado a uma singela ascensão desses mesmos grupos à posições de poder, destaque e prestígios sociais, levaram, com muita luta, um outro entendimento sobre as múltiplas facetas do chamado racismo à brasileira[1], passando de uma fase negacionista, ancorada por décadas no mito da falsa cordialidade entre as raças, para um momento de acentuada percepção do sofrimento da população negra. Também o crescimento de novas formas de comunicação de massa, facilitadas pela tecnologia digital, compartilham rapidamente cenas que comprovam o caráter racista de nosso povo; fatos que sempre estiveram aí, mas que propositalmente ignoramos.

Festas temáticas com cicatrizes históricas, no Brasil, o sofrimento de seres humanos vira tema nas rodas da alta sociedade brasileira, algo impensável em qualquer país minimamente comprometido com a justiça.  Senzalas recriadas, com direito a Sinhás e Mucamas. Nesses espaços - onde se ignoram imagens de crianças negras sendo abordadas de forma truculenta por agentes de segurança pública, de uma mulher arrastada, após ser baleada,  pelo asfalto, a bordo de um camburão (caso Cláudia Silva Ferreira), o racismo não existe.

Infelizmente o racismo também ainda não existe para muitos daqueles que sofrem com ele, prova de que ainda há muito a ser feito no que se refere à consciência de raça e classe entre o povo.

Independente do caso e da gravidade, o fato é que a cultura negra tem sido forte e reiteradamente atacada em todo o território nacional, não por grupos terroristas ou reconhecidamente criminosos, mas pelos ditos cidadãos de bem, civis de reputação ilibada e, não raro, orgulhosos de suas posições face ao sagrado. Os ataques culminam  num aumento de casos esdrúxulos e perversos de racismo e apropriação indevida da cultura afrodescendente. Dentre eles, destacam-se os de motivação religiosa, como vandalização de terreiros sagrados e a descaracterização de elementos caros à cultura negra nacional, como a última tentativa de um  projeto de Lei do vereador de Salvador Isnard Araújo (PL), nº 411, que propusera a mudança do nome de uma das dunas da Lagoa do Abaeté para um nome embranquecido e cristianizado, em suma, europeizado, “Monte Santos Deus Proverá”. De imediato, a ação foi criticada por membros das religiões de matriz africana.

O racismo se reinventa sob a crítica ao chamado “politicamente correto” alegado por muitos racistas. Se atualmente é considerado de extremo mau gosto se dirigir à população negra com termos que há 10 anos atrás eram considerados apenas “brincadeira”, o racismo se vale de malabarismos semânticos a fim de se perpetuar. A última moda está nas vitrines, literalmente, a saber, uma no aeroporto de Salvador, que comercializa estátuas de pretos velhos acorrentados, com direito à legenda e tudo, e outra em famosa de grife da classe média que se valeu de uma campanha na qual um manequim de coloração preta é exposto simulando quebrar a vidraça do estabelecimento “a fim de aproveitar a liquidação”.

O racismo no Brasil tem por bases a sua negação e, acima de tudo, a falta respeito mínimo, de todas as formas, para com a existência da população negra que, independente de ser pobre ou rica, periférica ou central, é vítima de tratamentos indignos a qualquer ser humano.  Sob velhas roupagens, o racismo no Brasil continua violentando, assassinando, torturando, baleando e matando. Exemplo triste se refere ao estado da Bahia, caracterizado como o mais letal para a população negra, tendo somente a sua capital concentrado mais de 90% de suas execuções policiais em pessoas negras. Sob as suas  novas formas, o racismo brasileiro deturpa as pautas antirracistas, disfarçando-se no identitarismo midiático a fim de esconder os fossos da desigualdade socioeconômica e de direitos que mantém homens e mulheres negras nas bases da pirâmide social. O racismo, vale lembrar, possui ideais aliados, um deles é a meritocracia, que apregoa a falaciosa ideia de que aqueles que se esforçam vencem, mentira, no Brasil, por mais que se esforcem os negros, perecem.

 Porque o racismo no Brasil é assim, se renova para manter tudo no mesmo lugar.

 

Gilene Pinheiro

Mestre em Ensino e Relações Étnico-Raciais (UFSB)

Secretária de Combate ao Racismo - CUT Bahia

 

[1] O  racismo à brasileira se vale de uma suposta mestiçagem/miscigenação harmônica para mascarar as reais consequências do legado escravista nas estruturas da sociedade nacional.