Os povos originários e a aplicação da Convenção 169 no Brasil
Publicado: 29 Fevereiro, 2012 - 00h00
A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho trata dos direitos dos povos originários pelos países membros da entidade. O Brasil é signatário desta Convenção desde 2002. Infelizmente, isso não impediu o processo histórico de violência e desrespeito às populações indígenas e quilombolas. Nesses próximos dias, fruto da pressão da CUT e dos setores envolvidos nessa temática, o Governo Federal finalmente debaterá com essas entidades os inúmeros problemas relacionados à má aplicação da Convenção 169 no Brasil.
Este texto apresenta, em linhas gerais, o quadro histórico da aplicação desta Convenção no Brasil e seus impasses até a última Conferência Anual da OIT, ocorrida em 2011.
A formação econômica e social do Brasil
A formação econômica e social brasileira deve ser compreendida no contexto da transição ocorrida para o surgimento do modo de produção capitalista. As grandes navegações, o colonialismo, o mercantilismo, a escravidão africana e a revolução industrial são momentos dessa transição de uma sociedade que rompia com as amarras do feudalismo para iniciar uma sociedade que fincava suas raízes na exploração capitalista do trabalho. As diversas formas de organizações sociais que existiam pelo mundo afora foram subordinadas ao processo mercantil do capital.
No Brasil isso se expressou, inicialmente, pela invasão territorial pelos portugueses e pela dizimação e escravização dos povos indígenas. Como ainda não tinham encontrado metais em nosso país, a plantação de cana de açúcar iniciou os variados ciclos econômicos que marcaram durante séculos a econômica agro-exportadora brasileira. A dizimação indígena e a dificuldades encontradas em sua escravização e a rentabilidade que o tráfico negreiro constituiu, levaram os colonizadores a importarem os negros escravizados da África para o trabalho na cana de açúcar, na extração mineral, na plantação inicial de café, entre outros. Em todos esses ciclos econômicos as riquezas extraídas no Brasil – assim como nos demais países colonizados – foram importantes para a chamada acumulação primitiva de capitais, contribuindo para que o nascente capitalismo desse o salto necessário para o seu desenvolvimento. De 1500 até 1930 a economia brasileira foi fundamentalmente agro-exportadora, importando todo tipo de produto manufaturado e industrializado, subordinada aos interesses coloniais e dos países centrais capitalistas, mesmo com sua independência formal.
Socialmente, as consequências foram contraditórias. Ao mesmo tempo em que uma elite nacional foi forjada nessa relação de dependência com os países centrais, os setores populares foram brutalmente explorados. A população indígena foi praticamente dizimada. O Brasil aparece hoje com o menor percentual de população indígena em relação a sua população total da América, menor inclusive aos Estados Unidos que promoveu um massacre de seus indígenas. A população negra no Brasil, após o final da escravidão, não obteve nenhuma reparação, sendo relegada a marginalidade nos centros urbanos e sob formas subumanas de sobrevivência pelo interior do país. As inúmeras revoltas indígenas, negras e populares ocorridas durante séculos no Brasil demonstraram o acirramento desse processo de formação econômica e social brasileira. A luta pelo reconhecimento e pela demarcação de terras indígenas e quilombolas é histórica e ainda permanece atual, com inúmeras dificuldades perante a intransigência dos grandes proprietários de terra que exercem um poder considerável sobre as ações governamentais que caminham a passos lentos no reconhecimento dos direitos dessa população historicamente marginalizada.
A aplicação da Convenção 169 da OIT
Diante dessa situação, A Central Única dos Trabalhadores – CUT, em 2008, produziu um Comentário sobre a aplicação da Convenção nº 169 da OIT, relatando a situação dos povos indígenas e dos quilombolas. Neste documento, relatamos vários níveis de problemas acerca das seguintes questões: a) Auto-identificação; b) Consulta e Participação; c) Direito às terras e aos recursos naturais; d) Desenvolvimento; e) Saúde. Vejamos o seu conteúdo.
Auto-identificação
Segundo informa o relatório “O critério da auto-identificação dos povos tribais [artigo 1, parágrafo 2, da C. 169] foi incorporado à legislação nacional por meio do Decreto nº. 4887/2003, que regulamenta o procedimento para titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos. Em 2007, o governo reafirmou esse critério ao estabelecer o reconhecimento da auto-identificação dos povos e comunidades tradicionais como um dos objetivos da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais [Decreto nº 6040/2007]”. Acontece que a Fundação Cultural Palmares, órgão governamental, criou critérios objetivos para o reconhecimento de comunidades quilombolas criando obstáculos do direito de auto-identificação pelas próprias comunidades quilombolas, num claro desrespeito às normas da Convenção 169 da OIT. Essa situação criou ainda mais dificuldades para o reconhecimento e legalização das terras quilombolas.
Consulta e Participação
Apesar de existirem inúmeros fóruns de discussões sobre os povos indígenas o relatório indique que “a efetividade desses fóruns é questionada pelos povos indígenas e quilombolas – seja pela ausência dos interessados [reuniões ocorridas em locais de difícil acesso ou marcadas com pouca antecedência, discussões realizadas apenas na rede mundial de computadores]; pela falta de preparação para a discussão [reuniões marcadas com pouca antecedência e fornecimento de subsídios para discussão às vésperas da reunião]; pela superficialidade dos debates [reuniões com duração insuficiente] ou pela aparente desconsideração das manifestações dos atores sociais. Existe a impressão de que as consultas populares, quando realizadas, têm a finalidade exclusiva de validar as políticas públicas.” Nesse sentido, nosso questionamento se dá pela deficiente aplicação da referida convenção, e a solicitação de assistência técnica da OIT.
Direito às terras e aos recursos naturais
A questão fundiária é um dos graves problemas enfrentados tanto pela população indígena como pelos quilombolas. A remoção dessas populações, quando necessárias, também violou direitos constituídos. Houve um declínio no número de terras reconhecidas e de investimentos financeiros no processo de titulações dessas terras, aumentando o grau de violência nessas áreas, como é demonstrado no relatório. A extração mineral por parte de empresas é outro fator de conflito em áreas dos povos remanescentes.
Desenvolvimento
Como as consultas e a participação dessas populações são deficientes, a elaboração de políticas públicas para esse setor também são falhas, mesmo com a instituição de novos mecanismos governamentais como, por exemplo, a Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República. Segundo o relatório “No caso dos quilombolas, a insuficiência das políticas públicas é o maior problema. Os programas Brasil Quilombola e Bolsa Família beneficiam apenas um número reduzido de comunidades. Aliás, em 2007, o governo empenhou-se para estender os benefícios do Bolsa Família aos quilombolas e constatou a falta de informação sobre essas comunidades e as dificuldades decorrentes de seu isolamento geográfico [abandono].” Além disso, outro fator preocupante é o trabalho forçoso. “Em 2007, o grupo móvel de fiscalização do Ministério do Trabalho libertou mais de 1000 índios que trabalhavam em condição análoga à de escravo no Mato Grosso do Sul.”
Saúde
No último item do relatório afirmamos que “A proteção à saúde de índios e quilombolas é outra fragilidade brasileira, que, evidentemente, está relacionada à questão fundiária, à pobreza, ao isolamento geográfico e à discriminação. Trata-se de um ciclo vicioso: falta de terra leva à impossibilidade de subsistir, que gera insegurança alimentar, que resulta na deterioração da saúde, que é agravada pela deficiência da assistência à saúde.”. Essa situação provocou altíssimas taxas de desnutrição e de mortalidade infantil, provocando inclusive, em 2006, preocupação da comissão de peritos da OIT.
A conclusão do relatório clama pelo efetivo cumprimento, por parte do governo brasileiro, da referida convenção: “Nesse contexto, é preciso repensar a atuação governamental, para que se dê efetividade à Convenção nº 169, priorizando a regularização das terras [pressuposto da subsistência, do controle da violência e da preservação cultural] e o diálogo social [pressuposto de legitimidade de qualquer política pública]. Para tanto, a assistência técnica da OIT e a troca de experiências entre os países da América do Sul seriam extremamente proveitosos.”
Raposa Serra do Sol – a luta pela demarcação das terras
Em março de 2009, por meio do julgamento do Superior Tribunal Federal - STF foi demarcada de forma contínua a área indígena Raposa Serra do Sol, no estado de Roraima, depois de um longo processo de lutas. O Governo Federal havia homologado a demarcação das terras, mas, os fazendeiros invasores não acataram a decisão, utilizando a área de maneira irregular nas plantações de arroz e, de forma violenta, expulsaram a população indígena de suas terras. Os cerca de 18 mil indígenas dos povos Makuxi, Patamona, Taurepang, Wapichana e Ingarikó que vivem na Raposa Serra do Sol aguardavam desde 2005, ano da homologação da terra, a retirada dos invasores. Por mais de 30 anos, os indígenas estão lutando por sua terra. Neste período, mais de 20 lideranças foram assassinadas; diversas pessoas foram feridas; pontes, escolas e casas foram incendiadas, entre outras violências.
A CUT esteve presente em todos os momentos, organizando ações e pressionando o governo, o STF, mobilizando setores organizados da sociedade para a defesa dos interesses dessas populações indígenas que sofrem há séculos com o avanço dos grandes interesses econômicos, destruindo suas tradicionais formas de vida, arrancando suas terras e destruindo suas culturas. Esse processo demonstrou que a unidade dos setores populares é de fundamental importância para a defesa dos interesses oprimidos.
Solidariedade Internacional
Em conformidade com a necessária troca de experiências entre os países da América Latina, a CUT participou, em março de 2010, na Guatemala, de discussões sobre a Convenção 169, cuja aplicação também passa por inúmeros problemas. Nesta atividade trocamos experiências e apontamos ações conjuntas junto à OIT para pressionar os governos no respeito aos direitos dos povos originários.
Em abril de 2010, a AFL – CIO, através de seu Centro de Solidariedade promoveu em Temuco – Chile o “Encontro de promoção dos Convênios 111 e 169 OIT e os povos originários”. Nessa oportunidade, compartilhada com a CUT – Chile e com os povos Mapuches, população indígena com uma longa história de luta, trocamos experiências e informações sobre a situação dos povos originários e a relação com o movimento sindical. Como o Chile havia ratificado a Convenção 169 da OIT e produziria seu primeiro relatório, a CUT Brasil foi convidada a apresentar sua experiência na produção de seu comentário e como estabeleceu a relação com os povos indígenas e quilombolas no Brasil.
Em novembro de 2010, em Assunção – Paraguai, em atividade promovida pela CSA, também promovemos troca de experiências sobre a aplicação da Convenção 169 nos dois países. No Paraguai, na região do Chaco, há inúmeros casos de descumprimento da convenção, denunciadas à Corte interamericana de Direitos Humanos.
Nossa avaliação dessas experiências foi positiva, e demonstrou que na singularidade que temos há aspectos comuns tanto na situação dos povos originários como para o movimento sindical. O avanço do capital produz consequências sociais semelhantes em distintas realidades: ao mesmo tempo em que produz desigualdades unifica os setores populares na luta contra a sua própria dinâmica. Creio que essa seja a principal lição dessas experiências.
A 100ª Conferência Anual da OIT: breves considerações finais
Entre os dias 1 e 17 de junho, em Genebra, na Suíça, ocorreu a 100ª Conferência Anual da OIT. Dentre inúmeros temas tratados, foi analisado o relatório do Governo brasileiro sobre a aplicação da Convenção 169. Diante da gravidade da situação dos povos quilombolas e indígenas, o Governo brasileiro foi informado pela OIT da má aplicação da referida Convenção no Brasil e da possibilidade de sua inclusão na lista dos 25 países que descumprem as convenções da OIT. O relatório do Governo insiste na prerrogativa da Fundação Palmares de determinar o reconhecimento de comunidades quilombolas, o que desrespeita o direito a auto-identificação, conforme relatado em nossos comentários.
Diante disso, o Governo brasileiro endereçou um relatório detalhado sobre a situação desses povos no Brasil e se comprometeu a convocar uma reunião com as centrais sindicais brasileiras ainda em 2011 para debater o tema. Nesse sentido, a CUT aceitou retirar o país da lista com o compromisso de enfrentar os problemas indicados nos comentários enviados por nossa Central. Hoje temos 343 territórios indígenas e 87 territórios quilombolas registrados, porém, seguem sem registro 283 terras indígenas e 590 territórios quilombolas, que estão aguardando os trâmites burocráticos e, ainda, 224 terras indígenas que nem mesmo iniciaram o processo de registro. Essa situação aumenta ainda mais o grau de violência no campo, com assassinatos recorrentes de indígenas, como os que ocorreram recentemente no estado de Mato Grosso do Sul.
Fruto da pressão exercida na 100ª Conferencia da OIT, somente em 2012, o governo Federal convocou duas importantes atividades sobre o tema: no dia 2 de março, uma reunião extraordinária da Comissão Tripartite de Relações Internacionais do Ministério do Trabalho para apresentar as medidas adotadas pelo Governo brasileiro para implementação de mecanismo de consulta em cumprimento aos princípios da Convenção nº 169, sobre populações indígenas e tribais da OIT; nos dias 8, 9 e 10 de março, um Seminário que “dará início ao processo de diálogo social entre os representantes governamentais e os representantes dos povos indígenas e quilombolas, das organizações de empregadores e de trabalhadores, juntamente com o Grupo de Trabalho Interministerial que coordenará este processo para apresentar proposta de regulamentação da consulta prévia”, com o seguinte compromisso: “O processo de diálogo iniciado no seminário terá seguimento e os resultados dos debates, as sugestões, as recomendações e as estratégias serão sistematizados. Todos esses resultados orientarão os trabalhos deste Grupo Interministerial na determinação das estratégias e canais de diálogo”, conforme convocatória enviada à CUT.
A CUT, comprometida com o debate democrático e com a defesa dos interesses da população indígena e quilombola do Brasil, em conjunto com as organizações desses setores, participará ativamente desse debate.
Essa trajetória de relação com as organizações desses setores, a luta histórica dos movimentos populares brasileiros e ação da CUT demonstrou que devemos aliar as ações cotidianas em nosso país com a intervenção internacional junto a esse importante instrumento, que é a OIT. As Normas Internacionais do Trabalho, principalmente para os países da periferia do sistema capitalista, adquirem um sentido progressista e de defesa dos interesses imediatos da classe trabalhadora. Demos um passo importante, mas, nossa caminhada continua.