Para crianças, dignidade e cidadania
Publicado: 22 Setembro, 2015 - 00h00
“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
Art. 227 – CF/1988
Em nossa história como nação, as cisões com o passado perverso, estruturado em uma lógica exploradora e indiferente ao outro, são um processo de idas e vindas que produzem novas esperanças e também, em alguns momentos, beiram o abismo da tragédia coletiva, colocando em risco o sentido de pertencimento à humanidade.
Momentos de acirrados embates entre a construção de uma sociedade justa e a manutenção de relações de exploração tomam de sobressalto nossa unidade como povo, fortalecendo o paradigma da exclusão que ultrapassa a nossa sustentável desigualdade.
Nesses “tempos bicudos”, temos sido assaltados repentinamente em nossas conquistas construídas com muita luta. Propostas legislativas que ferem direitos constitucionais e convenções internacionais ratificadas pelo nosso país têm sido aprovadas à revelia do debate democrático e sem o menor pudor no Congresso Nacional.
O ataque não poupa nem mesmo aqueles que chamamos de futuro da nação. E com base em um forte apelo à naturalização da punição e à violação de direitos legitimamente conquistados, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Constituição Federal passam por processos de esfacelamento, com a desfiguração das normas de proteção integral de crianças e adolescentes.
Escamoteando a previsão legal de que já a partir dos 12 anos o adolescente pode ser responsabilizado por atos contrários à lei, os defensores da redução da maioridade penal manipulam a opinião pública com o argumento raso da redução da violência no país. A proposta de Emenda à Constituição – PEC 171/1993, que reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos de idade nos casos de crimes hediondos, e também para homicídio doloso e lesão corporal seguida de morte, foi aprovada pela Câmara e agora segue para o Senado.
Estudos nas áreas de criminologia e ciências sociais demonstram que não há relação direta entre o endurecimento de penas punitivas e a diminuição dos índices de violência e que tanto as políticas de endurecimento das penas quanto as de encarceramento têm demonstrado serem ineficientes. A relação é oposta: o ingresso antecipado no sistema penal brasileiro expõe os jovens a mecanismos e comportamentos reprodutores da violência, aumentando as chances de reincidência. Nas penitenciárias, as taxas de retomada da criminalidade chegam a 70%; no sistema socioeducativo os índices estão abaixo de 20%.
A forma e as condições da aplicação das medidas socioeducativas para inibir a reincidência e promover a ressocialização são questionáveis no sentido de seu aprimoramento. O Estado descumpre a legislação ao não implementar a reintegração social. O que deveria ser espaço educacional e pedagógico, com primazia de políticas humanistas, configura-se em amontoado de jovens com poucas possibilidades de convivência, estudo e lazer, e onde a violência se reproduz. O trabalho, então, não pode ser para encarcerar jovens em locais sem qualquer possibilidade de acolhimento e reinserção social. A luta é pela melhoria dos espaços e das condições para que os adolescentes tenham a oportunidade de resgatar sua cidadania.
A redução da maioridade penal representa o encarceramento da juventude pobre e negra, atingindo em sua maioria os filhos dos trabalhadores. São esses mesmos jovens que serão inseridos, a partir dos 14 anos, no mercado de trabalho, se aprovada a PEC18/2011 e seus apensos. A Constituição Federal em seu Art. 7º, inciso 33, proíbe que pessoas menores de 16 anos exerçam qualquer forma de trabalho, salvo os aprendizes, que podem começar a partir dos 14 anos.
Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – Pnad/IBGE, entre 2001 e 2013, o Brasil reduziu em 58,1% o índice de crianças e adolescentes envolvidos em algum tipo de atividade laboral; a média mundial de redução foi de 36% no mesmo período. As políticas públicas brasileiras de redução da desigualdade e de combate à pobreza têm sido importantes para a diminuição do trabalho infantil. À medida que as famílias são assistidas financeiramente por programas sociais, como o Bolsa Família, por exemplo, a tendência é de as crianças não trabalharem para complementar a renda. Isso garante, dentre outras coisas, a frequência à escola.
A entrada precoce no mercado de trabalho impede o pleno desenvolvimento físico, intelectual e psicológico de crianças e adolescentes. Além de esses jovens serem afastados da convivência familiar, perdendo um tempo precioso que teriam para estudar, descansar, brincar, eles ficarão expostos a diversas formas de violência, pois dificilmente as condições de trabalho são as adequadas à idade.
A Constituição Federal prevê que o trabalho humano proporcione dignidade às pessoas. No entanto, as Propostas de Emenda Constitucional desconsideram o princípio da dignidade humana e o direito ao não trabalho como pressuposto para o pleno desenvolvimento de crianças e adolescentes. Também desprezam o compromisso firmado pelo Brasil para erradicar as piores formas de trabalho infantil até 2016, conforme previsto na Convenção 182, da OIT; e todas as formas de trabalho infantil, até 2020.
A exploração de crianças e adolescentes deve ser motivo de indignação de todas e todos, pois pobre é o país que explora o trabalho infantil para alavancar seu crescimento econômico; miserável a nação que constrói sua riqueza pelas mãos de suas crianças e adolescentes. Estéril é a sociedade que se cala diante da possibilidade de parte significativa de seu futuro ser assassinada, presa, explorada. Envergonhada torna-se a comunidade que suporta a pobreza ética, moral, intelectual, pois é esta que sustenta o ciclo da outra, que jamais pode ser usada para justificar o trabalho infantil.
As reduções da maioridade penal e da idade mínima para o trabalho são decisões tão miseráveis quanto o contexto social de violência, de pobreza e de desigualdades que lutamos para eliminar. A barbárie social é um problema coletivo. O sofrimento de qualquer pessoa nos diminui a todos, pois somos parte de uma mesma humanidade.