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Artigo

Por um novo sindicato

Publicado: 03 Agosto, 2021 - 00h00

O mundo do trabalho sofreu enormes transformações na última década. O avanço da tecnologia e do capitalismo de plataforma cresceu aceleradamente, reduziu seu custo e garantiu o aumento dos ganhos de produtividade. Nesse cenário, a precarização avançou na proporção do aumento da desigualdade social e da concentração da riqueza.

As péssimas condições da informalidade, os contratos atípicos, a uberização, o ataque ao sindicato, o desmonte das políticas de proteção social e da legislação trabalhista  deixaram os trabalhadores e trabalhadoras entregues à própria sorte. Com a relação de trabalho difusa, ele (a) não sabe quem é o responsável pela sua remuneração e seus direitos. Com quem estabelecer um processo de negociação?

A fragmentação, com a alta rotatividade e a pulverização, cria uma nova realidade, na qual  os trabalhadores não dividem mais um mesmo local de trabalho, o que impede a criação de laços de solidariedade através do compartilhamento dos problemas e das expectativas comuns. As culturas do individualismo e do empreendedorismo completam o quadro, dificultando também a construção de uma organização coletiva.

O serviço público sofre um desmonte acelerado com a redução das políticas públicas e a transferência das responsabilidades do estado para o setor privado. A terceirização sem limites, o fim dos concursos e os cortes no orçamento fragilizam os servidores O encolhimento do serviço público, somado à desindustrialização, impacta na conformação e na organização da classe trabalhadora. Trata-se de empregos com estabilidade, direitos e benefícios garantidos e, por essas razões, com maiores índices de sindicalizados. A substituição desses postos por outros precários tem impacto nos índices de representatividade.

Nesse mundo, a proposta do sindicato, longe de se tornar obsoleta, é extremamente atual. A luta de classe não é hoje menos agressiva do que quando eles surgiram. Contudo, com a nova configuração do trabalho, eles vêm se enfraquecendo, perdendo seu espaço de negociação. É urgente recuperar seu poder de organização, força social e política.

Porém, sua força política quem dá são os trabalhadores organizados. Embora esse seja um princípio fundamental, muitas vezes é considerado de forma invertida na definição das estratégias. Não será o sindicato fortalecido que trará o trabalhador para a luta, é o trabalhador dentro do sindicato que dá a ele força política para tanto. Daí, o primeiro desafio não é representar, é organizar.  A representação será uma consequência natural.

Para responder a esse desafio, é preciso ter clareza de que nem o mundo do trabalho voltará a ser o mesmo, nem as formas de

organização da classe. Sua configuração atual exige que o sindicato se reinvente para manter-se fiel a seu princípio constituinte e seu papel. Deve ser uma referência para o trabalhador formal, sua base tradicional, mas que acolha também aqueles e aquelas que vivem à margem da proteção sindical. Precisamos de modelos onde o velho e o novo convivam.

Um projeto para renovação passa por identificar e assimilar as mudanças que estão ocorrendo e a partir daí definir novas estratégias de ação, mantidos os princípios. O sindicato tem que acolher as reivindicações dos formais, que também estão expostos à precarização, estar presente no local de trabalho, liderando os processos de negociação coletiva e, ao mesmo tempo, abrir os espaços para os que estão fora da cobertura sindical.

É necessário construir novos espaços de diálogo e um novo conteúdo, novas propostas. Para boa parte da juventude trabalhadora, falar em contrato formal, férias e décimo terceiro não faz sentido. São jovens que não conhecem e nem têm expectativa de conseguir um emprego nessas condições. Precisamos conhecer suas necessidades e demandas concretas. Usando o exemplo dos entregadores, que ganharam maior expressão na pandemia, é urgente garantir uma estrutura de apoio, onde eles possam fazer uma pausa, e que será também um ponto de encontro; é preciso lutar por seguro de vida, um auxílio para manutenção das motos e bikes, por uma boa internet e pelo direito de  acesso aos dados que produzem. Para além da igualdade de direitos com os trabalhadores e as trabalhadoras que estão na formalidade, a pauta deve incluir demandas que atendam às suas necessidades especificas.

É necessário utilizar novos instrumentos de comunicação e investir nas novas tecnologias. Não chegaremos aos trabalhadores apenas com boletins impressos, através de artigos no site. Sem abandonar nossas formas tradicionais de contato com a base, precisamos ir além com uma postura proativa, alcançá-los através das redes sociais, de modo direto e rápido. Ninguém pára mais para ver um vídeo de 20 minutos, nem a velha guarda. O volume de informações é absurdo, o conteúdo tem que fazer sentido para quem recebe à primeira vista, dialogar diretamente com os seus interesses e necessidades, senão será descartado de imediato.

Ao mesmo tempo, somos desafiados a preservar os velhos canais de comunicação. O contato direto, a conversa olho no olho não pode ser abandonada. Ainda precisamos da formação política e sindical presencial. Não podemos abandonar o velho e nem recusar o novo! Devemos manter o equilíbrio entre uma mensagem que seja ágil e direta, que chegue rápido à base e, ao mesmo tempo, não normalizar uma comunicação que aumenta os riscos de impessoalidade e superficialidade, e não forma consciência coletiva e de classe.

Precisamos de uma estrutura que seja orgânica, mas que seja também horizontalizada e desburocratizada. Se o trabalhador tiver que preencher uma longa ficha de papel e entregar pessoalmente no sindicato, ele não se filiará. Se a solicitação tiver que ser submetida a uma cadeia hierarquizada de autorizações, ele não se sentirá acolhido. Temos que fortalecer e inovar no exercício da democracia. Os fóruns de participação como as assembleias, congresso são fundamentais, mas devem ser dinâmicos, devem utilizar as ferramentas virtuais. A pandemia já mostrou que isso é possível.

A pauta não pode tratar majoritariamente de interesses internos: estrutura, eleições, disputas políticas, financiamento, orçamento. Também ela, porque é preciso transparência para merecer a confiança dos trabalhadores e trabalhadoras. Porém, a construção da pauta deve ser fruto de consultas constantes. Devemos garantir  que o processo seja coletivo, que eles participem e se sintam contemplados.

O sindicato deve estar no espaço cotidiano, ter presença na comunidade, nas lutas do dia a dia. Os problemas de transporte público, saneamento, o combate à violência contra as mulheres, o genocídio da juventude negra nas periferias, a homofobia têm que contar com o acompanhamento e a presença do seus dirigentes. Sua sede deve ser um espaço aberto para a comunidade, onde a demanda por trabalho digno, por direitos trabalhistas, se some às pautas dos movimentos populares e sociais. A ação sindical não pode mais se restringir à pauta da negociação coletiva, deve se ampliar, reivindicar políticas públicas que também garantem melhores condições de vida para a classe trabalhadora. 

É necessário valorizar a cultura do território para que ela seja uma forma de resistência ao conteúdo massificador e discriminatório do sistema. Os diversos modos de expressão cultural que nascem nas periferias das cidades e do país são também espaços de organização popular e solidariedade. Hoje, o rap fala mais da luta por respeito à dignidade dos trabalhadores e das trabalhadoras do que o jornal do sindicato.

Ele deve também apoiar as organizações solidárias, os arranjos locais, os pequenos empreendimentos familiares, o pequeno comércio local, as redes que vão se construindo para gerar trabalho e renda na comunidade e garantir sobrevivência. Incentivar e dar apoio às experiências de economia solidária, não apenas enquanto uma alternativa, mas também como experiências de organização coletiva.

É urgente estabelecer uma nova forma de nos relacionar com o espaço e o tempo, em sintonia com as experiências e a dinâmica atual do dia a dia da classe, senão nos descolamos do mundo real. A maioria dos trabalhadores não sabe mais o que é uma jornada de oito horas diárias e 44 horas semanais, não sabe mais o que é a hora de almoço. O trabalho é de domingo a domingo, 12 horas por dia, sem controle de jornada. Não se sabe mais o que é um local fixo, uma mesa, instrumentos personalizados, ter companheiros e  companheiras com quem  se convive diariamente. O trabalho é na rua, dentro de casa, cada dia num lugar diferente, sem previsibilidade. Se a vida do sindicato se limitar ao espaço da sua sede, de segunda a sexta, das 09h00 às 18h00, a distância com a base só vai aumentar. A estrutura deve funcionar, mas a presença na base, a rotina dos dirigentes, a vida sindical não pode se pautar por ela.

Por fim, é preciso renovar. Essas mudanças não acontecerão se esses trabalhadores não estiverem lá dentro, participando ativamente. Deve haver uma identidade entre os representantes e os representados. Quem vive a realidade do novo mundo do trabalho e conhece o rosto da precarização precisa estar dentro do sindicato, na construção da pauta e das estratégias. Também aqui, o novo e o velho precisam conviver. Não podemos perder a experiência acumulada de tantos companheiros e companheiras, não podemos abrir mão da solidez de uma luta sindical que garantiu tantas conquistas para a classe, mas precisamos também nos deixar desafiar por quem está chegando, reconhecer humildemente que precisamos aprender com o diferente para fazer um sindicalismo que acolha e represente toda a classe. Uma realidade que não muda: sempre teremos que lutar para garantir a dignidade e o direito dos trabalhadores e trabalhadoras!

*Graça Costa é professora, servidora pública do município de Quixadá, Secretária de Organização e Política Sindical da Executiva Nacional da CUT.