Escrito por: José Rezende Jr., de Curitiba para a Agência PT

100 dias de Vigília Lula Livre: nem mesmo o inverno pode deter a primavera

Brasileiras e brasileiros de todos os cantos do país, que transformaram Curitiba na capital nacional da resistência, não deixam Lula sozinho

RICARDO STUCKERT

Faça calor ou frio, caia geada ou chova canivete: o presidente Lula não fica sem o seu bom dia, boa tarde, boa noite, gritados por brasileiras e brasileiros de todos os cantos do país, que transformaram Curitiba na capital nacional da resistência. Gritam bem alto, para que Lula escute em sua cela, e ele escuta, sorri, e responde a cada bom dia, boa tarde, boa noite, e comenta com os amigos que o visitam: “são as minhas doses diárias de insulina”. Gritam bem alto, para que cada bom dia, boa tarde, boa noite se transforme em um brado de liberdade e ecoe pelo país, pelo mundo inteiro.

A Vigília Lula Livre tem a mesma idade da prisão sem prova do líder de todas as pesquisas de intenção de voto para presidente: 100 dias, completados no último domingo (15). Nestes 100 dias choveu, abriu o sol, fez calor e agora faz frio, muito frio. O vento cortante parece zombar da meteorologia: os termômetros marcam 8° C, mas o frio, que atravessa indiferentes camadas e mais camadas de agasalhos de lã, gorros, cachecóis, luvas, meias e cobertores, parece pior, muito pior.

Então, para esquentar o frio, os manifestantes empunham suas cuias de mate fumegante e muito se abraçam. São tantos os abraços que quase se poderia dizer que diante do prédio da Superintendência da Polícia Federal, inaugurado em 2007 pelo presidente Lula, o que se trava é o embate entre o calor humano e a letra fria da lei. Mas já não há leis, atropelaram todas, até a Constituição, escrita com a participação do deputado Luiz Inácio Lula da Silva. Tudo para manter encarcerado o preso político Luiz Inácio Lula da Silva.

A Praça da Democracia

Inútil procurar no mapa: oficialmente, não há em Curitiba uma praça em homenagem à militante comunista assassinada pelos nazistas num campo de concentração, na Alemanha, em 1942. Mas a Praça Olga Benário de fato existe. E resiste. Existe porque os manifestantes escreveram no asfalto: “Praça Olga Benário”, e resiste porque é dali que partem as doses diárias de insulina que inundam as veias do presidente Lula.

Há 100 dias, os manifestantes da Vigília Lula Livre resistem à chuva, ao sol, ao calor e ao frio; às ordens judiciais de despejo; às balas de borracha e bombas de gás atiradas pela Polícia Federal na noite de chegada do helicóptero que trazia Lula prisioneiro; às balas de chumbo disparadas contra o Acampamento Marisa Letícia que por pouco não matam o militante Jeferson Lima de Menezes, ferido no pescoço; aos fascistas que atacaram de surpresa durante a noite queimando bandeiras e até a colcha feita pelas bordadeiras de Minas Gerais, que seria entregue ao presidente Lula no dia de sua libertação; ao delegado da Polícia Federal que destruiu o equipamento de som (e desde então, o bom dia, boa tarde, boa noite conta apenas com o heroico auxílio de um megafone).

Pela Vigília Lula Livre passaram deputados e senadores, os pré-candidatos à Presidência Manuela D’Ávila (PCdoB) e Guilherme Boulos (PSOL), o Prêmio Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquivel, o ator e ativista norte americano Danny Glover, o ex-presidente uruguaio Pepe Mujica, os cantores Chico César, Ana Cañas e Flavio Renegado, os atores Herson Capri e Lucélia Santos, a chef Bel Coelho, a apresentadora Bela Gil e tantos outros nomes ilustres.

Wagnão, presidente dos Metalúrgicos do ABC, Gleisi Hoffmann, presidenta do PT e Vagner Freitas, presidente da CUT.

Passaram, sobretudo, brasileiras e brasileiros comuns, sozinhos ou em caravanas vindas de Norte a Sul do país. Anônimos e anônimas, feito a faxineira de um banco privado que mora na periferia de Curitiba e enfrenta quatro ônibus para chegar à Vigília e outros quatro para voltar para casa. Ou a senhorinha humilde que, ao saber que a Vigília seria mantida por doações (de dinheiro, alimentos, roupas, cobertores e até eletrodomésticos), abriu a bolsa e doou tudo o que tinha: algumas poucas moedinhas, entregues à resistência com todo o orgulho do mundo.

Uns chegam e vão embora. Alguns vão e depois voltam. Outros estão desde o começo. Cantam e tocam violão, participam de oficinas de bordado, pintura, yoga, fazem rodas diárias de conversa e discutem de tudo: golpe, conjuntura política e econômica, agroecologia, reforma da Previdência, saúde alternativa, direitos da mulher, Pré-Sal, relações internacionais, gênero e diversidade.

À noite dormem em barracas ou beliches e treliches construídos com as próprias mãos. Na hora do almoço, de pé, as vítimas momentâneas da fome enfrentam duas filas: uma para fazer o prato, outra para lavar o prato e os talheres.

E varrem a rua várias vezes por dia. E distribuem flores para os vizinhos, e ficam felizes ao descobrir que entre mais de 80 casas visitadas, só quatro recusaram a gentileza.

Esperança e Resistência

Inspirados em Lula, que desde criança ouvia o conselho da mãe, dona Lindu (“teima, meu filho, teima”), e teimou a vida inteira, os manifestantes teimam em não perder a esperança. Nem mesmo diante do golpe dentro do golpe que foi a desobediência ilegal, comandada pelo juiz de primeira instância Sergio Moro, ao habeas corpus em favor de Lula concedido pelo desembargador Rogério Favreto, no domingo anterior (6/8).

Os manifestantes passaram aquele domingo comemorando a libertação de Lula. Cantaram, dançaram, agitaram bandeiras vermelhas, verdes e amarelas, de todas as cores do arco-íris. Riram e choraram de alegria. Fazia calor, e mesmo assim os abraços se multiplicaram, como se para espantar de vez o frio da alma. Até que à noite a decisão também ilegal do presidente do TRF-4, Carlos Eduardo Thompson Flores, determinou a manutenção da prisão política de Lula.

Mas já na manhã seguinte a resistência estava outra vez de pé. Porque, como disse Lula no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, horas antes de ser levado preso para Curitiba: “podem matar uma, duas, três rosas, mas jamais poderão deter a chegada da primavera”. Ainda que seja inverno.

Personagens da Vigília

A vizinhança entrou em pânico quando o MST ocupou as ruas do bairro. “Começaram a dizer que eram bandidos e iam invadir nossas casas”, lembra a curitibana Regiane Santos. Decidida a conferir se o diabo era tão feio quanto pintavam, ela se aproximou dos militantes. Fez tantas amizades que sua casa virou sede da cozinha comunitária Marielle Franco, além de abrigar um sem número de sem-teto. Pela colaboração à resistência, Regiane teve a ficha de filiação ao PT assinada em domicílio, pela própria presidente do partido, Gleisi Hoffmann. “Antes eu também tinha medo do MST, mas era porque eu via muito a Rede Globo”, conta.

Um dia depois da prisão de Lula, quando Sislaine Geyger (a Sissi) e Ivan Bueno se preparavam para partir de Florianópolis rumo a Curitiba, um vizinho perguntou aonde eles iam com a camionete lotada de mantimentos. “Vamos pra guerra”, respondeu Ivan. Técnico freelancer em eletrônica de aviação, Ivan atua na logística da Vigília, transportando pessoas e coisas. Professora de literatura aposentada, Sissi voluntariou-se para comandar as duas máquinas de lavar roupa doadas à resistência, que operam a todo vapor. Nos primeiros dias, acampado em local inseguro e sob risco de um ataque fascista, o casal aprendeu uma preciosa lição com o MST. “Passamos a dormir de botinas, prontos pra qualquer emergência”, conta Sissi.

Quando alguém pergunta por que uma doutora em saúde coletiva virou cozinheira, Márcia Castagna, que passa sua segunda temporada na Vigília, esclarece: “Não estou cozinhando, estou alimentando a resistência ao golpe contra o povo brasileiro”. Coube a ela estimular o consumo de legumes e verduras, doados por agricultores familiares da região. Márcia também foi responsável pela adoção de pratos de cerâmica, em vez dos descartáveis utilizados nos primeiros dias. “É interessante porque ajuda a preservar o meio ambiente. E também do ponto de vista da divisão do trabalho: depois de comer, cada um lava o seu prato. Bem mais socialista, né?”

Técnico em elétrica desempregado pela crise econômica, Wesley Ferreira Rangel ganhava a vida vendendo jujubas e balas de coco em Rio das Ostras (RJ). Ganhava bem, chegou a alugar e mobiliar uma quitinete. Quando Lula foi preso, largou tudo e embarcou para Curitiba, onde está há 70 dias. Na Vigília, Wesley é pau para toda obra. Ajudou a fazer os beliches e treliches, colabora na limpeza, faz o que for preciso. “Eu era um militante de internet. Agora estou aqui, vivendo um momento histórico, crescendo como ser humano e trabalhando por um ideal: libertar e eleger Lula presidente, pra melhorar a vida do povo brasileiro”, orgulha-se.

A empresária paranaense Rosane Gutjahr é a recordista em doações para a Vigília Lula Livre. De uma única vez, desembolsou nada menos que R$ 100 mil. “Bloquearam os bens do presidente Lula, multaram o Instituto Lula, a Vigília precisava de dinheiro e eu tinha”, justifica a empresária que sempre foi de esquerda e sempre votou em Lula, mas nunca se filiou ao PT. Rosane não quer ser nem é tratada como uma espécie de militante vip da Vigília, que visita todos os dias, ajudando no que é preciso. Só faz questão de duas coisas: a primeira é Lula livre; a segunda é o que o futuro presidente da República, de próprio punho, assine a ficha dela de filiação ao PT.

Eliezer Silveira Ferraz é um completo desconhecido na Vigília Lula Livre. Morador de um assentamento no interior do Paraná, Eliezer chegou logo no começo e já avisou que só sai junto com o presidente Lula. Apesar de responsável pela distribuição dos alimentos doados à Vigília, ninguém conhece o tal Eliezer, que anda o dia inteiro para lá e para cá carregando sacos de mantimentos, ostentando a barba comprida e o boné de guerrilheiro cubano. “É que meu nome é muito difícil, daí todo mundo me chama de Fidel”, explica o Eliezer que ninguém sabe quem é.

Moradora do assentamento Vitória do Contestado, em General Carneiro, interior do Paraná, Morhana dos Santos acaba de bordar um paninho branco com a frase: “Lula nós te amamos”. Se pudesse, Morhana bordava mil paninhos, costurava um no outro, formava uma toalha ou uma colcha e entregava em mãos ao presidente. Mas ela não pode. “A gente aqui tão perto dele e não pode olhar nos olhos dele, conversar com ele. Mas eu tenho certeza que o presidente Lula sabe que não está lá sozinho, que nós estamos aqui com ele”, consola-se, enquanto borda mais um paninho, dessa vez com a frase: “100 dias de luta”.

Maria Maciel da Silveira fechou a casa e a vendinha de arroz, feijão, óleo e cigarro na periferia de Curitiba, pegou três ônibus e chegou à Vigília Lula Livre, onde exerce o árduo posto de cozinheira de um exército de militantes famintos. Tanto sacrifício por dois fortes motivos: “Tenho que alimentar esse povo, não posso deixar ninguém se abater. E preciso deixar um mundo melhor pros meus quatro netos”.

O capixaba Mikail Coser, a esposa Pauliane e o companheiro de movimento de luta por moradia Sérgio pegaram a estrada no Espírito Santo rumo à resistência em Curitiba. O dinheiro acabou logo na chegada. A solução foi comprar em consignação duas camisetas de um dos muitos vendedores do início da Vigília, revender as duas, comprar mais algumas e assim por diante. Deu tão certo que o passo seguinte foi investir numa máquina de estampar camisetas e criar a própria marca (@camisetaslulalivre, no Instagram).

Mikail e Pauliane adotaram um cachorro abandonado, o Dirceu, que uiva quando alguém grita Lula livre. Na sequência, “adotaram” também o ser humano Ilderaldo Gomes, desempregado e recém despejado da casa onde morava, em Curitiba. Ilderaldo, por sua vez, adotou uma cadela abandonada, a Petrobrás.

Mikail, Pauliane, Sérgio, Ilderaldo, Dirceu e Petrobrás estariam acampados, não fosse o fato de que o acampamento não aceita animais de estimação. O jeito foi alugar uma pequena casinha perto da Vigília, onde essa nada tradicional família brasileira vive feliz para sempre, unida pelo amor a Lula.