Escrito por: Maria Maeno, Daniela Sanches Tavares e Cristiane Queiroz Barbeiro Lima

28 de Fevereiro – Dia Internacional de Combate às LER/DORT

2016: a precarização do trabalho, a desconstrução dos direitos e as LER/DORT

Reprodução CUT/CONTRACS

As  Lesões  por  Esforços  Repetitivos  ou  Distúrbios  Osteomusculares  Relacionados ao  Trabalho  (LER/DORT)  ganharam visibilidade  no  Brasil,  na  década  de  1990  e  os primeiros  protocolos  do Ministério da Saúde  e da Previdência Social, que demonstravam uma  compreensão  mais  abrangente  desse  adoecimento,  datam  do  início  dessa  década, durante  o governo Collor.  O  movimento  social,  em  particular  o  sindical,  apoiado  no conhecimento  técnico,  soube  aproveitar  as frestas  das instituições  e  os  impactos  que  a organização e a gestão do trabalho adoecedoras impunham ao corpo e à subjetividade dos trabalhadores  foram assumidos oficialmente.  Conquistaram espaço na mídia sindical e na grande imprensa as pessoas acometidas, com suas  faces  sofridas,  dores e incapacidades.

Alguns  ramos  econômicos  e  empresas  tornaram-se  conhecidos  como  produtores  de doenças  no  meio  sindical  e  dentre os profissionais  que  atuavam  em  órgãos  públicos. Durante anos, congressos de profissionais de saúde, notadamente ortopedistas, cirurgiões de  mão,  reumatologistas,  médicos  e  enfermeiros  do  trabalho,  especialistas  em  dor  e imagem, mantiveram painéis sobre LER/DORT.

Passados mais de 20 anos dessa época,  o cenário que se apresenta é o de algumas conquistas e muitas derrotas. As conquistas se deram no campo normativo e institucional, isto  é,  outras  normas  surgiram  e  atualmente,  tanto  o  Protocolo  de LER/DORT do Ministério  da  Saúde  como  a  Instrução  Normativa  98  do  INSS situam  o  adoecimento dentro  de  um processo  de  desgaste  decorrente  da  organização  do  trabalho  com  suas exigências físicas e psicológicas, que se enlaçam e se fundem, produzindo dores crônicas  e incapacidade,  por  vezes  permanente.  Essas  normas,  assim,  rejeitam  a  tese  de que as LER/DORT sejam  resultantes de riscos mensuráveis, estanques  e independentes  uns dos outros. Quando os movimentos repetitivos são evidentes e cíclicos,  como numa linha de montagem,  a  relação  entre  o  trabalho  e  o  quadro  clínico  é estabelecida  facilmente.  Mas quando  a  exigência  de  movimentos,  geralmente  acompanhados  de  sobrecarga  estática é menos evidente, como no atual trabalho bancário, aspectos organizacionais e psicossociais ganham força na análise da causalidade. O critério epidemiológico também   é antigo aliado da saúde pública  na descoberta das causas dos sofrimentos humanos.    As normas oficiais rejeitam  também  a  tese  de  que  as  afecções  relacionadas  às  LER/DORT  se  comportam 
clinicamente  como  tendinites  ou  outros  processos  inflamatórios  agudos,  destacando  a evolução  frequente  para  quadros  de dor  crônica,  de  difícil  tratamento  e  recuperação. 


Dessa  compreensão  decorre  uma  pauta  para  a sociedade,  que  abrange  a  necessidade  de mudanças profundas na organização, gestão e gerenciamento do trabalho, para que novos casos sejam prevenidos e para que  os  adoecidos possam ser reabilitados. Também entra na  pauta  a  necessidade  de  se  criar  redes  de  atenção  no  SUS  que  acolham  e tratem precocemente pessoas com quadros decorrentes de LER/DORT, para que a incapacidade seja  evitada  ou  cronificada. Ações  institucionais,  mesmo  que  insuficientes,  por  parte  do SUS,  da  Pasta  do  Trabalho  e  do  Ministério  Público  do Trabalho  têm  tentado  conter  a progressão  e  as  consequências  de  epidemias  de  LER/DORT,  particularmente  em  alguns 
ramos  como  os  frigoríficos,  bancários  e  do  teleatendimento.  Algumas  ações  judiciais coletivas  na  Justiça  do  Trabalho vêm  encontrando  acolhimento  por  parte  dos  juízes  e desembargadores. 


As  derrotas  se  deram  no  campo  da  realidade  do  mundo  do  trabalho  e  entre  os muros das empresas, onde imperam relações trabalhistas  cada vez mais  desequilibradas entre  o  capital  e  os  trabalhadores.  O  processo  de  precarização  do trabalho,  com  suas terceirizações,  a  intensificação  e  o  ritmo  acelerado  de  trabalho,  relacionados  ao enxugamento  do contingente  de  trabalhadores  têm  imposto  derrotas  sucessivas  à  luta pela proteção da saúde e  da vida dos que trabalham.

Em alguns ramos econômicos, como os bancos, nos quais se tornaram visíveis socialmente os primeiros casos de LER/DORT no Brasil,  esses  adoecimentos continuam  ocorrendo,  mas  cada  vez mais  acompanhados  por transtornos  psíquicos, decorrentes  das  pressões  por  metas,  pelas  cobranças  contínuas, pelas humilhações e assédio moral.  Os serviços públicos seguem também a lógica do setor privado,  adotando  contornos  semelhantes,  com  progressiva  e  rápida  diminuição dos concursos  e  aumento  dos  terceirizados,  sob  uma  organização  e  gestão  do  trabalho adoecedoras,  em  meio  a conflitos causados,  por  um  lado,  por  prescrições  de procedimentos inexequíveis, que engessam a máquina pública  e por outro, a necessidade de  “se tocar” o cotidiano e responder  à demanda, muitas vezes passando-se  por cima  dos mesmos procedimentos.

Disso decorre uma profusão de processos disciplinares, utilizados para  responsabilizar  as  pessoas  individualmente  e  não  a estrutura  de  funcionamento.  O panorama se completa  com o controle protocolar  e o clima organizacional desfavorável a um aprimoramento das ações e serviços destinados à sociedade, cada vez mais privada da atenção de que realmente necessita.


Paralelamente à recusa por parte das empresas em se reestruturar, a não ser pelo interesse  de  aprimorar  a  sua  capacidade  de competir  e  produzir  mais  com  menos investimentos,  tem-se  apostado  no  mais  fácil,  isto  é,  em  mudanças  de  mobiliário e em ginástica laboral,  endossadas por consultorias, e  úteis para compor um cenário falacioso de que as empresas estão tomando providências em prol da saúde.  A ginástica laboral é um  dos  exemplos  de  como  o  mercado  vende  simples  e  falsas soluções  para  situações complexas, criando-se mais um  fardo e obrigação  para  o trabalhador.  São falsas soluções registradas e legitimadas  em relatórios médicos, ambientais  e “ergonômicos” pagos pelas empresas, para acalmar a fiscalização por parte do Estado.  Estado esse que criou o nexo técnico  epidemiológico  (NTEp)  em  2006,  mas  tem  sido  incapaz  de  dar  satisfações à sociedade  sobre  o  processo  de  sua  implementação.  Adotado  pela  Previdência  Social,  o NTEp  resultou  nos  anos seguintes  em  aumento  considerável  do  número  de  benefícios acidentários  por  LER/DORT  no  país.  Porém,  inúmeras  têm sido  as  denúncias  de descaracterização  de  casos  ocupacionais,  fato  que  não  gerou  por  parte  da  Previdência 
Social  um  efetivo  acompanhamento  e  avaliação  dessa  rara  tentativa  de  diminuir  a conhecida subnotificação de doenças ocupacionais.  Os benefícios por  LER/DORT naquele órgão têm diminuído nos últimos anos, mas  esse fato não gera  qualquer preocupação ou estudo dos motivos que têm levado  a essa diminuição. Tampouco se permite que se façam investigações,  já que os dados por empresas não são divulgados,  sob o argumento de que se  trata  de informação  protegida  pelo  sigilo  fiscal³,    ou seja, um  mecanismo  de  proteção das  empresas,  previsto  para  situações  específicas,  neste  caso,  é  indevidamente utilizado para  se  ocultar  informações  de  suma  importância  para  o  planejamento  estatal  e  mesmo para  a  sociedade organizada,  sobre  saúde  pública  e  seus  determinantes.  Mesmo  com  a vigente  Lei  de  Acesso  à  Informação  no  país,  as informações  disponibilizadas  a  partir  de pedidos  da  sociedade  são  opacas  e  não  transparentes,  pois  são  fornecidas  sem o detalhamento necessário para sua análise, o que acarreta muitas vezes em dados  para o planejamento supracitado, além da demora intrínseca no atendimento à solicitação.  Pelos dados  disponíveis  no  portal  institucional  da  Previdência  Social,  no máximo,  pode-se chegar a ramos econômicos  nos quais os adoecimentos são mais frequentes, utilizando-se o  Código  Nacional de  Atividade  Econômica  (CNAE)  e  grupos  de  adoecimentos,  mesmo assim, com  quase metade dos CNAE registrados como “ignorados”.  É importante que fique claro  que  a  diminuição  de  registros  de  casos  ou  benefícios  ocupacionais  só  favorece as empresas  responsáveis  pelas  ocorrências,  que  correm  menos  riscos  de  sofrerem  ações regressivas  e  têm  mais  uma brecha  para  diminuir  a  alíquota  flexível  a  ser  paga  para  o Seguro de Acidente do Trabalho (SAT), o fator acidentário de prevenção (FAP), que incide sobre a alíquota fixa por subclasse econômica, chamada de riscos ambientais do trabalho (RAT) e que pode ser de 1%, 2% ou 3%. A  Pesquisa  Nacional  de  Saúde  (PNS),  realizada  pelo  Instituto  Brasileiro  de Geografia  e Estatística  (IBGE),  divulgada  em  2013,  revelou  que  3.568.095  pessoas disseram ter tido diagnóstico de LER/DORT (2,29% do total da população estimada pela PNS).  É  o  maior  número  a  que  se  chegou  em  qualquer  pesquisa  ou  banco  de  da dos de âmbito nacional. Embora a comparação entre os números deva ser feita com restrições, pode-se  inferir  com  segurança  que  a subnotificação  de  doenças  ocupacionais,  em particular  das  LER/DORT  de  fato  é  muito  grande.  Apenas  para  referência,  o número  de registros de afecções musculoesqueléticas ocupacionais na Previdência Social no mesmo ano da PNS foi de 101. 814.

A  tutela da segurança e saúde do trabalhador continua com a empresa, lado forte do contrato de trabalho e  o arrefecimento da aplicação do NTEp nas perícias médicas do INSS implica  a  diminuição do reconhecimento do caráter ocupacional das LER/DORT.

Colocados  esses  aspectos,  em  minha  opinião,  nada  temos  para  comemorar  nesta data. Tampouco a lamentar. 
A  conjuntura  exige  que  aqueles  que  lutam  pelos  direitos  dos  trabalhadores  se unam  e  atuem  pela  sua  preservação, colocando-se  claramente  contra  a  terceirização  e outras  formas  de  precarização  do  trabalho,  aspectos  determinantes  da degradação  da saúde dos trabalhadores. 


Da  mesma  forma,  o  Estado  deve  fortalecer  os  órgãos  protetores  dos  direitos humanos, invertendo a lógica de proteção dos mais fortes, que se perpetua desde o início da história oficial deste país.  Assumir que há uma profunda  desigualdade social do país e que portanto, não é possível se pensar em uma fórmula comum para todos, é primordial. Não  somos  iguais  e  sequer temos  as  mesmas  oportunidades,  apesar  da  Constituição Federal dizer que todos são iguais perante a lei e que há prevalência dos direitos humanos, dentre outros. 


Talvez  assim,  possamos  um  dia  dizer  que  esta  sociedade  não  sacrifica  seus trabalhadores,  fechando  os  olhos  para  a desconstrução  de  seus  direitos  e  ceifando  seus sonhos  e  aspirações  precocemente,  proporcionando  o  desgaste,  o adoecimento  e  o envelhecimento social seletivo. 


 

Maria Maeno – médica, pesquisadora da Fundacentro
Daniela Sanches Tavares – psicóloga e advogada, tecnologista da Fundacentro
Cristiane Queiroz Barbeiro Lima – ergonomista, tecnologista da Fundacentro

 

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