56 trabalhadores são resgatados de trabalho análogo à escravidão em fazendas do RS
Eles não tinham direito de beber sequer água, não recebiam alimentos nem iam ao banheiro
Publicado: 13 Março, 2023 - 08h39 | Última modificação: 13 Março, 2023 - 10h32
Escrito por: Redação CUT | Editado por: Marize Muniz
Pelo menos 56 trabalhadores, entre eles 10 adolescentes com idades entre 14 e 17 anos, foram resgatados em situação análoga à escravidão em duas fazendas de cultivo de arroz em Uruguaiana, a 630 quilômetros de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.
O resgate foi feito por auditores-fiscais do trabalho em conjunto com a Polícia Federal e Ministério Público do Trabalho na nesta sexta-feira (10), nas estâncias Santa Adelaide e São Joaquim.
Eles trabalhavam fazendo o corte manual do arroz vermelho - um tipo de grão que cresce junto às espécies de arroz de maior consumo no país e que desqualifica o produto final por ser impróprio para alimentação -, e usavam ferramentas inadequadas, como facas de cozinha. Segundo relatos feitos ao grupo móvel de combate ao trabalho escravo, um dos menores sofreu um acidente com um facão e ficou sem movimentos de dois dedos do pé.
Os trabalhadores também era obrigados a aplicar agrotóxicos com as mãos sem equipamentos de proteção. Em uma das propriedades, era feita a aplicação de veneno pelo método de "barra", em que dois trabalhadores aplicam o agrotóxico usando uma barra metálica perfurada conectada a latas do produto – um tipo de atividade que exige equipamentos individuais de proteção.
As jornadas eram extenuantes e começavam antes mesmo de chegarem à frente de trabalho pois eram obrigados a caminhar sob o sol por cerca de 50 minutos, do alojamento até a área de cultivo de arroz, e mesmo assim não tinham direito sequer a beber água.
De acordo com o auditor-fiscal do trabalho Vitor Siqueira Ferreira, além de sede, os trabalhadores também passavam fome, porque a comida azedadava ou estava infestada de formigas. O resultato é que chegavam a desmaiar de fome e sede e ainda tinham descontos nos salários por isso.
Sem condições de terminar a jornada, eles perdiam parte do salário. É evidente que os desmaios aconteciam e que não era dado nenhum cuidado pelo explorador da mão de obra. Se ele [o trabalhador] não cumprir a jornada, seja por qualquer motivo, não recebe [a diária].
“O grau de ofensividade da situação vai desde não ter água, comida, banheiro, local para descanso, até realizar uma atividade extremamente difícil em condições climáticas extremamente exigentes. Isso é o que mais afronta a dignidade do trabalhador”, complementou o auditor.
A operação foi realizada nas estâncias Santa Adelaide e São Joaquim após uma denúncia sobre a presença dos jovens na propriedade, em trabalho irregular e sem carteira assinada.
Nos locais, foi constatatado também que os trabalhadores recebiam R$ 100 por dia, pagos semanalmente, e eram responsáveis por preparar o próprio almoço, que muitas vezes estragava devido ao calor intenso, e eram obrigadas a comprar as ferramentas usadas no trabalho. Os dias em precisavam ficar afastados em razão de doença eram descontados do salário.
Contratados por 'gatos'
Os trabalhadores eram da região, oriundos de Itaqui, São Borja, Alegrete e da própria Uruguaiana, e foram recrutados por um "gato", um agenciador de mão de obra que atuava na fronteira oeste do Estado, e sequer conhecem o dono das propriedades.
O responsável pelo agenciamento ilícito foi preso em flagrante por redução à condição análoga a de escravo (Art. 149 do Código Penal), conduzido à Polícia Federal e será encaminhado ao Sistema Penitenciário.
“Estamos investigando a real titularidade da relação de emprego, pois existe um dono das terras, que contratou uma empresa robusta para fazer a semeadura e o cultivo do arroz. Estamos reunindo documentos para saber como é a relação entre o dono da safra e a empresa responsável pelo semeador e cultivo, para saber quem é o real titular da relação de trabalho com essas pessoas”, explica.
Destino dos trabalhadores
As vítimas voltaram para as suas casas e receberão, de imediato, três parcelas do seguro-desemprego. O Ministério Público do Trabalho também vai requerer o pagamento de indenizações por danos morais individuais e coletivos.
Retrato do Rio Grande do Sul
Segundo os órgãos, trata-se do maior resgate já registrado em Uruguaiana, no Rio Grande do Sul, município responsável por grande parte do arroz produzido no Brasil. Segundo o estudo “Radiografia da Agropecuária Gaúcha 2022”, desenvolvido pelo Departamento de Políticas Agrícolas e Desenvolvimento Rural, o estado é responsável por 70,4% da produção nacional do grão. A região de Uruguaiana produz 32% da safra do estado.
A ação se soma ao resgate 207 pessoas em trabalho análogo à escravidão na colheita de uvas ,em vinícolas de Bento Gonçalves, também no Rio Grande do Sul.
O caso veio à tona após seis trabalhadores conseguirem fugir e denunciar o caso. Naturais da Bahia, eles afirmaram que, pela proposta de trabalho, teriam a alimentação, hospedagem e transporte custeados nas plantações, porém, ao chegarem no Rio Grande do Sul, tiveram que pagar pelo alojamento, contraindo dívidas. O local apresentava péssimas condições de salubridade. Os resgatados relataram ainda que recebiam ameaças e intimidações.
Em 8 de março, o empresário Pedro Augusto de Oliveira Santana, investigado por manter as 207 pessoas em trabalho análogo à escravidão, teve seus bens bloqueados pela Justiça do Trabalho, a partir de pedido do Ministério Público do Trabalho.
"A gente percebe que existe no campo uma cultura de que a vida é difícil mesmo e será assim desse jeito. Essa conduta de naturalizar a indignidade é algo que não podemos concordar e vamos seguir trabalhando para evitar", afirma Vitor Ferreira.
Com informações da PF, MPT e BdF