70% dos resgatados são contratados por terceirizadas que atuam no campo
Plantações no campo são responsáveis por 70% dos casos e de resgates de trabalhadores em situação análoga à escravidão. Empresas burlam a lei utilizando terceirizadas que aliciam trabalhadores
Publicado: 16 Março, 2023 - 12h01 | Última modificação: 16 Março, 2023 - 12h08
Escrito por: Rosely Rocha | Editado por: Marize Muniz
Nos primeiros meses do ano o país foi surpreendido com as denúncias de maus-tratos, choques elétricos e surras que eram aplicadas em 207 trabalhadores oriundos da Bahia que colhiam uvas para as vinícolas Salton, Aurora e Garibaldi, em Bento Gonçalves (RS). O que estarreceu a maioria da população, infelizmente, é recorrente em todo o país, com homens, mulheres, jovens e crianças sendo aliciados pelos chamados “gatos” para trabalharem em obras e, principalmente, no campo em época de colheita.
O que nem todos sabem é que o campo é responsável por 70% dos casos e de resgates de trabalhadores em situação análoga à escravidão. Empresas burlam a lei utilizando terceirizadas que aliciam trabalhadores, são os chamados ‘gatos’, intermediadores de mão de obra.
Além do caso da colheita de uvas, que registrou o maior em número de resgatados em uma única operação neste ano, também há casos de atuações por trabalho análogo à escravidão nas colheitas de café, cana, alho e, recentemente, foram flagrados trabalhadores em situação precária e sem direitos nas atividades de extração de palha de milho para fazer cigarro, arroz e na produção de carvão. Essas são as atividades que mais têm utilizado mão de obra análoga à escravidão nos últimos anos, segundo Maurício Krepsky Fagundes, auditor fiscal e chefe da Divisão de Fiscalização para a Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae), do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).
Os trabalhadores, além de não receberem seus salários e outros direitos, são submetidos a dívidas sem fim ao comprarem alimentos em estabelecimentos determinados pelos patrões, e ainda ficam alojados em locais onde não há a mínima higiene e em muitos casos são ameaçados e impedidos de deixarem o local de trabalho.
Para tentar burlar a lei e evitar o pagamento de direitos trabalhistas, muitas desses empregadores recorrem a empresas terceirizadas dizendo que pagaram tudo de acordo com o que determina a legislação trabalhista, que permite esse tipo de contrato de trabalho.
“Esse é um subterfúgio que a maioria das empresas adota, por isso que 70% dos casos e 70% dos resgates feitos pelos auditores fiscais do trabalho são em empresas terceirizadas contratadas para atuar no campo, principalmente em época de colheita”, diz Maurício Krepsky.
O auditor conta que pela sua experiência em casos consolidados e de conhecimento a maior parte desses casos envolve tanto a terceirização lícita quanto a ilícita, a fraude do emprego.
“A empresa tomadora tenta burlar, se afastar da responsabilidade com os trabalhadores contratando qualquer empresa sem idoneidade para fazer atividades de seus interesses e isso ocorre tanto ano âmbito rural como no urbano”, afirma.
Krepsky, prossegue, dizendo que em sua experiência como auditor, “a maior parte dos casos envolve intermediário que pretensamente é o dono da atividade econômica, mas na verdade sempre tem uma pessoa acima dele. “Os pretensos donos da empresa que contratam os trabalhadores são aliciadores ou no máximo gerentes de mão de obra”.
É desta forma que o tomador de serviços tende a burlar essa relação, não pagando o trabalhador, com o intermediário ficando com parte do dinheiro e descontando ilegalmente os salários.
“As tentativas de burlar a lei são muitas na terceirização. Tem pessoal sem registro em carteira de trabalho contratos como MEI [microempreendedor individual] para fazer a colheita da cebola, da palha de milho. Não tem sentido, a gente sabe que eles são trabalhadores sem registro profissional, não são empreendedores, não tem empresa. Há casos, inclusive em que o contador da suposta MEI é o mesmo da empresa contratante. Quando se identifica a fraude ou vínculo trabalhista, a tomadora é autuada por ser a real empregadora”, ressalta Krepsky.
O auditor explica que apesar da terceirização permitir a atividade fim, existe na legislação a responsabilidade da tomadora do serviço em questões de saúde e ambiente. “Se tiver irregularidades a responsabilidade também irá recair sobre o contratante. A diferença é que antes as multas e punições recaiam apenas sobre as tomadoras de serviços, hoje as terceirizadas também são punidas”, diz.
Oscilação no número de resgates
Em 2022 pelo menos 2.575 trabalhadores (número recorde, até então) foram resgatados de condições análogas à escravidão em 432 operações realizadas em todo o Brasil. Em 2021 foram 1.937 resgates. Em 2020, foram 942 em 2019 foram 1.054 pessoas resgatadas.27 de fev. de 2023.
O Brasil atingiu 60.251 trabalhadores resgatados desde a criação dos grupos especiais de fiscalização móvel, base do sistema de combate à escravidão no país, em maio de 1995. Nesses 28 anos, R$ 127 milhões foram pagos a eles em salários e valores devidos.
Segundo Krepsky, a oscilação no número de resgates ano a ano, desde que o Brasil começou a combater o trabalho escravo depende do número de ações de fiscalização. Ele acredita que o aumento no número de equipes de auditores fiscais do trabalho passando quatro para cinco nos últimos anos, tenha contribuído para o maior número de resgates. Ao todo são 24 auditores fiscais, mas nas operações de resgate as equipes são na maioria das vezes, acompanhadas pela polícia, Ministério Público do Trabalho (MPT) e Defensoria Pública.
“A diferença que os auditores do trabalho são sempre os mesmos nos resgates, já as demais equipes mudam de acordo com o local das ações”, pontua.
Ele acrescenta que “quanto mais ações e denúncias apuradas temos mais contatos com resgatados que acabam tendo ciência de seus direitos e quando encontra outro emprego igual, eles denunciam”.
Brasil é único país do mundo com ações voltadas ao combate de trabalho escravo
Segundo Krepsky, o Brasil é o único país do mundo que tem um sistema unificado de combate ao trabalho escravo. “Em países da América Latina e até nos Estados Unidos, não há equipes voltadas especialmente para essas ações. Normalmente são individualizadas e vira uma bagunça. Eles envolvem apenas a polícia e outros órgãos, mas não há a centralização e dados de transparência como o nosso”, diz.
“O Brasil é exceção nas ações que envolvem conjuntamente outros órgãos. Temos esses dados contabilizados e a lista suja, que outros países não têm.
Os dados podem ser consultados no Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil
Lista suja do trabalho intimida grandes empresas
Segundo o chefe do Detrae, o maior receio das empresas é ter o nome divulgado na lista suja do trabalho escravo, por temerem a reação pública, com boicotes em compras de seus produtos.
“ As grandes empresas são as que mais entram com liminares na Justiça pedindo a retirada de seus nomes da lista com argumentos injustificáveis como perdas de lucros e possíveis demissões, por causa da reação dos consumidores”.
Ainda de acordo com o auditor fiscal as multas são menos temidas por grandes empresas do que a repercussão da opinião pública.
“ O problema para elas é chegar à sociedade o nome da empresa, por isso há um imenso esforço jurídico de grandes empresas para barrar a inclusão na lista suja. A petições para se desvencilharem geralmente não tem base legal, mas algumas conseguem convencer juízes. O que chama a atenção é que elas nunca dizem que não utilizarem mão de obra análoga à escravidão, mas que vão quebrar relações comerciais”, conta Krepsky.
A lista do trabalho escravo é atualizada a cada seis meses. A próxima será divulgada no dia 5 de abril deste ano.
Sobre a lista suja
A inclusão das empresas ou pessoas físicas na lista só acontece depois da fiscalização no local das denúncias, de investigação, defesa dos acusados e conclusão do processo administrativo e, algumas vezes, criminal.
Cada irregularidade trabalhista gera uma multa que, segundo Auditores-Fiscais do Ministério do Trabalho, pode chegar a R$ 600 mil.
Os empregadores – pessoas físicas e jurídicas – permanecem listados, a princípio, por dois anos. Eles podem optar, contudo, por firmar um acordo com o governo e serem suspensos do cadastro. Para tanto, precisam se comprometer a cumprir uma série de exigências trabalhistas e sociais.
Como denunciar
O sistema central exclusivo do governo federal para receber denúncias de trabalho análogo à escravidão pode ser acessado aqui