Escrito por: Mayara Paixão, São Paulo (SP)
Para entender melhor essa realidade, a reportagem do Brasil de Fato foi até o Grajaú, distrito localizado na Zona Sul de São Paulo e é o mais populoso da capital
Por dia, 111 professores da rede estadual de São Paulo foram afastados por transtornos mentais ou comportamentais. Na ponta do lápis, o ano de 2019 já soma 27 mil licenças médicas por esses motivos até o mês de agosto.
Esses e os demais dados desta reportagem foram obtidos com exclusividade pelo Brasil de Fato através da Lei de Acesso à Informação (LAI).
No estado mais populoso do Brasil, os números expressivos revelam um cenário de adoecimento dos professores da rede pública.
Para entender melhor essa realidade, a reportagem foi até o Grajaú. O distrito está localizado na Zona Sul de São Paulo e é o mais populoso da capital.
O professor Alexandre de Mattos, 41, é morador da região. Metade da vida dele foi dentro da sala de aula lecionando português e inglês.
“Já me chamaram de marajá, de boa vida. Mas ninguém vem saber como estou. O que estou passando em casa. Apontar o dedo todo mundo sabe, tanto colega, quanto aluno, pai de aluno e até a comunidade. Ficam questionando ‘não está trabalhando mais não?’”, relata o professor.
“Muitas vezes eu nem me dou ao trabalho de explicar minha situação, porque eu sei que não adianta... Ninguém está nem aí, ninguém liga”, desabafa logo no início da conversa realizada na sala de sua casa.
Desde abril de 2018, a realidade mudou e se distanciou da rotina que Alexandre viveu por duas décadas. Ele está afastado das salas de aula pela perícia médica devido a um transtorno de ansiedade. “A gente não é máquina. Nós somos pessoas”, enfatiza.
“Pelo fato de eu ter 41 anos, tudo mundo fala 'mas você é novo, tem muito chão pela frente. Você tem condição'. E não é assim, gente. É diferente”, explica.
“O nosso cansaço não é um cansaço somente físico. Mas é um cansaço psicológico, mental, que é muito mais difícil para a gente se restabelecer...”, conta o professor.
Na conversa por telefone, antes da entrevista em sua casa, Alexandre descreveu o ambiente que trabalhava como “insalubre”.
“Acho que o barulho é o principal fator que deixa qualquer pessoa desestabilizada dentro de uma sala de aula. Porque são muitos decibéis, acima do nível aceitável. Muitas vezes, a gente tem que gritar, bater na mesa, brigar com os alunos”, descreve.
A violência, verbal e física, também é mencionada pelo professor como fator agravante na rotina escolar. As longas e exaustivas jornadas de trabalho ficam como protagonistas do desgaste mental que ele sente.
“Eu começava a dar aulas de manhã, por volta de 7h, 8h e ia parar às 23h. Imagine a qualidade da minha primeira aula e a qualidade da última. É uma disparidade enorme.”
O professor tinha cerca de 600 alunos nas duas escolas onde lecionava. Somando o tempo dentro e fora de sala de aula, eram cerca de 65 horas semanais de dedicação ao trabalho.
A história do Alexandre se soma a de outros 53 mil professores da rede estadual. Esses profissionais foram afastados no ano passado por transtornos mentais e comportamentais. Atualmente, o estado conta com 186 mil professores entre ativos, afastados e licenciados.
No Parque dos Príncipes, na Zona Oeste, outro lado de São Paulo, a professora Andréa Roberta da Costa trabalha na Escola Municipal Conde Luiz Eduardo Matarazzo, onde a encontramos em meio ao barulho do recreio.
Andréa tem 40 anos e faz parte do principal perfil dos docentes da rede pública de São Paulo. De acordo com a Secretaria Estadual de Educação, 73% dos professores pertencem ao sexo feminino e 35% estão na faixa entre 40 e 49 anos.
A professora começou a carreira no estado em 2008 e já trabalhava no serviço de educação da Prefeitura de Osasco. “Foi no estado onde eu comecei a adoecer”, conta.
“Tive a oportunidade de estar em sala de aula e trabalhei em cinco escolas diferentes. As escolas eram longe e eu sempre trabalhei em bairros como Brasilândia, Paraisópolis, sempre na periferia”, diz.
Andréa avalia que viveu um processo de desgaste, que começou anos atrás. Relata, por exemplo, problemas de violência e falta de estrutura na maioria das escolas em que trabalhou. “Quando trabalhei na Brasilândia, era o teto da sala de aula caindo na sua cabeça”.
A professora recebeu o convite para assumir a diretoria de uma escola. Começava aí mais um período turbulento na trajetória de Andréa. A unidade era alvo da violência do tráfico de drogas.
Com a vida ameaçada, ela foi transferida de unidade a pedido da diretoria de ensino. De lá, foi para a Escola Professora Clorinda Danti, na região do Butantã.
Pouco tempo depois, ela se deparou com o principal acontecimento que a levou para as estatísticas apresentadas nesta reportagem.
“Foi nessa escola que eu sofri o ataque de um menino com faca na sala de aula. Um aluno de 11 anos, que já era usuário de drogas”, conta.
O episódio se desenrolou em 11 de maio de 2016. “No percurso da escola do estado para a escola da prefeitura, eu comecei a passar mal. Comecei a sentir o braço formigar, enjoo, tontura. Quando estacionei meu carro, tive o desmaio e ocorreram os primeiros socorros”.
Andréa sofreu um AVC, acidente vascular cerebral. O lado esquerdo do corpo ficou debilitado e ela passou por sete meses de fisioterapia para recuperar os movimentos.
As sequelas, no entanto, eram maiores do que os olhos podiam enxergar: a professora entrou em um quadro de depressão e, por diversas vezes, pensou em se matar.
“A mídia influencia muito. A criançada assiste filmes, novelas, e tenta se encaixar dentro daquele padrão, que não é a realidade deles. Isso aí também gera bastante violência”, defende.
Hoje, a professora está de licença não remunerada do estado, afastada por estresse pós-traumático. Já na escola da Prefeitura, está readaptada. Quando questionada se sente falta de estar em sala de aula, a resposta é imediata.
“Sinto muita saudade. Estar readaptada, às vezes, dá a impressão de que você é um peso dentro da escola. Não tem muita função. Você tem que ficar se reinventando todos os dias. Tem a professora readaptada que ajuda a coordenadora, tem a que trabalha na secretaria, tem a que que faz café…”, desabafa a professora.
Depois de ouvir o Alexandre e a Andréa, a reportagem procurou a psicóloga Renata Paparelli. A pesquisadora estuda a saúde mental dos professores da rede estadual de São Paulo e explica que o desgaste profissional da categoria está ligado à gestão pública.
Desde a década de 1990, uma mudança agravou a situação. Na época, foram implementadas políticas que levaram à intensificação do trabalho e à flexibilização de relações trabalhistas.
Paparelli destaca que nenhuma melhora na estrutura do ensino foi implementada. As salas de aula abarrotadas e a desvalorização profissional só pioraram, e a situação culminou na perda de sentido do trabalho para educadores, frustrados com a ausência de condições mínimas adequadas para educar os alunos.
“Acaba havendo uma responsabilização. É aluno que responsabiliza o professor; a família que responsabiliza o aluno e o professor; e o professor que responsabiliza o aluno. Mas a gente entende que a falta de condições de realização de um trabalho é a grande questão”, defende Paparelli.
“No caso docente, a perda do sentido do trabalho é gravíssima, porque é justamente pelo sentido do trabalho que as pessoas viram docentes; não é para ficar rica, por exemplo”, completa a psicóloga, que também é professora da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo.
Atualmente, o valor da hora-aula dos professores do primeiro ao sexto ano é de R$11,16 . Já o dos professores de ensino médio é de R$12,93.
Para o Alexandre, entrevistado do início da matéria, a valorização da carreira de professor é uma medida urgente para mudar essa realidade.
"Educação deve ser tratada como um direito de todo e qualquer cidadão”, defende.
Nas últimas duas décadas, o governo do estado de São Paulo teve como partido dominante o PSDB. Foram 18 anos sob gestão de figuras como: Mário Covas (1999 - 2001); Geraldo Alckmin (2001 - 2006; 2011 - 2018); José Serra (2007 - 2010); Alberto Goldman (2010 - 2011); e, agora, João Dória (2019 - atualmente).
Enquanto busca uma readaptação na rede estadual de ensino, Alexandre segue afastado da escola pública. Andréa está em situação semelhante.
Na escola da prefeitura, a professora possui um ateliê em uma salinha no pátio do colégio. Onde produz e ensina artesanato para as crianças. Ela também construiu um projeto de terapia com seu cachorro, o Gael, em que visita diversas escolas públicas.
As histórias aqui relatadas são apenas duas em um universo de 27 mil só até agosto de 2019. Em comum, também existe o sonho desses professores de que a educação, um dia, se torne prioridade. E a frustração a respeito do que foi feito até aqui.
FICHA TÉCNICA
Reportagem: Mayara Paixão | Edição: Katarine Flor | Sonoplastia: Jorge Mayer | Artes: Gabi Lucena | Coordenação de Multimídia: José Bruno Lima | Coordenação de Rádio: Camila Salmazio