Escrito por: Claúdia Motta, da RBA

Abrimos a casa para pessoas como nós, diz vizinha do acampamento Lula Livre

Barracas no quintal, varanda que vira cozinha comunitária, banheiro público. Para moradores, compartilhar a casa com pessoas da vigília é festa. E idealismo de fazer alguma diferença pelo Brasil

Cláudia Motta/RBA

 “Se as pessoas aqui na rua se dessem a mesma chance que eu me dei de conhecer o trabalho desse povo, de ver a garra, de ver a luta, de ver a solidariedade, a humanidade que tem, cada pessoa estaria pensando diferente e abrigaria duas ou três pessoas na sua casa.” Regiane do Carmo Santos, de 53 anos, fez mais que isso. É dona da casa onde tia Zélia, a famosa cozinheira de Brasília, preferida do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, distribuiu seu famoso boi ralado para centenas de pessoas.

Mas a festa, na casa onde Regiane vive com a mãe Marililda Bandeira dos Santos, de 74 anos, não foi somente nesse dia. Há mais de uma semana a residência simples – sala, cozinha, dois quartos e dois banheiros – está tomada por centenas de pessoas: homens, mulheres, jovens, idosos, que nesta sexta-feira (20) completam 14 dias de vigília pela libertação de Lula.

Barracas estão montadas pelo quintal, a varanda virou uma das cozinhas comunitárias que produz refeições para os acampados. Os dois banheiros da casa se tornaram públicos: valores simbólicos de R$ 2, e R$ 5 para quem quer tomar banho, são cobrados de quem pode pagar, para ajudar a cobrir despesas.

Centenas de pessoas circulam diariamente pelo quintal de Regiane e dona Marililda, mas para elas, não há problema. E elogiam este “idealismo” para tentar fazer alguma diferença pelo Brasil.

“Eu era absolutamente bitolada, me informava pela imprensa e tinha uma visão muito limitada do mundo. Até votei no Lula nas duas primeiras eleições, porque ele é gente do povo como a gente, mas não tinha partido”, conta Regiane. “Quando comecei a ver esse movimento aqui na vila, na rua, chegando os ônibus e descendo gente do MST, o povo todo pensando: tão chegando, pessoal, vão invadir. E desciam as malas. 'Tão armados, tem bomba, tem isso, tem aquilo' E a gente vai ficando com medo, né? Mas como vou continuar tendo uma ideia dessa, dessas pessoas se eu não for lá saber como é a verdade."

Ela conta que "no máximo" caminhava até a unidade policial próxima à Praça Olga Benário, centro do Acampamento Lula Livre e voltava. "Uns três dias eu fui assim. Aí falei: então vou me jogar no meio desse povo pra ver como é que é. Menina, me apaixonei, me encontrei. Tanto é que minha casa está aberta para todo mundo." 

Corrigindo injustiças

Regiane diz ser uma pessoa muito idealista, que não gosta de injustiça, de ver como está o mundo. “Então pensava comigo: eu tenho tantas ideias na minha cabeça, tenho tanto idealismo, tenho tanta vontade de poder fazer alguma coisa por alguém e graças a Deus hoje estou podendo fazer alguma coisa para todos os meus companheiros... meus irmãos. São minha família. Eles que me adotaram, não fui eu que adotei eles”, define.

E se emociona ao falar de empatia. “E eu falo isso, eu choro de emoção de ver o quanto eu fui injusta de ter um pensamento de ser tão radical. O que estamos precisando é disso, de exemplo. Independente de partido, nós estamos precisando de humanidade, de respeito, de se colocar no lugar do próximo. Eu estou muito feliz, pra mim é uma festa. Minha casa está cheia, é como se fosse um churrasco que convidei toda minha família e estão em festa!”

Cerca de 400 pessoas passam pela casa, diariamente. “Se mais espaço eu tivesse, mais eu colocaria”, reforça Regiane. “Quando eu vejo uma pessoa que não tem lugar pra ficar, como me disse uma senhora que chegou hoje... se eu pudesse, se tivesse condições, levantava um prédio e começava a puxar todo mundo: vem, que aqui tem espaço. Já cedi minha cama para uma pessoa mais idosa dormir, que não tem condição de dormir numa barraca. Sofrido é, gente. Pra esse povo é sofrido: você dormir embaixo de sol, de chuva, numa barraca, não ter lugar pra tomar um banho decente, não ter um banheiro. Mas eu acho incrível a união. Trabalham, se lascam, sofrem, vão dormir, mas no dia seguinte tá todo mundo assim, ó: alegre, contente, feliz. É o humanismo, o companheirismo e o idealismo pra tentar fazer alguma diferença nesse nosso Brasil.”

Não tem nada que desabone

A mãe de Regiane, de início, também teve receio dos novos "vizinhos". "No começo eu confesso que nós ficamos com medo, porque boato que se ouvia era terrível. Mas graças a Deus não tem nada que desabone. Totalmente inverso do que falaram."

Dona Marililda se refere a alguns vizinhos que até “viraram a cara” para ela e fazem comentários. “Que eu sou louca, onde é que você está com a cabeça, é tudo vândalo. Não tem vandalismo nenhum. Não se ouve algazarra, não tem briga, não tem bebedeira. Eles poderiam achar ruim se eu tivesse aberto as portas para um tráfico de drogas, um ponto de droga, uma prostituição. Daí eles poderiam falar. Mas não está acontecendo nada, graças a Deus tudo em paz, não tem nada que desabone, nada.”

Regiane atribui o preconceito à falta de iniciativa que ela mesma teve, de se aproximar e conhecer o que estão no acampamento, nessa vigília por Lula livre e pela retomada da democracia. “Pensam que é vagabundo, mas ninguém vem perguntar. Todos são trabalhadores. O pessoal do MST são trabalhadores, plantam. Eu fiquei de boca aberta de saber o trabalho desse pessoal. Aqui tem professora, jornalista, metalúrgico. É a união. Eles são povo e estão lutando por uma melhora pra todos. E quando eles conseguirem, todo Brasil vai se beneficiar, não vai ser só a classe deles. Mas quem está na luta, quem tá aqui sofrendo, são eles. E ninguém se conscientiza disso, né?”