Escrito por: Cida de Oliveira, da RBA
Especialistas, trabalhadores, ativistas e parlamentares alertam para perigos do avanço do mercado sobre esse bem essencial à vida e direito humano consagrado pela ONU
Se o mercado continuar mandando nas políticas e nos padrões de produção, distribuição e consumo de bens, as perspectivas em termos de mudanças climáticas e escassez de água no planeta são as piores possíveis. O alerta é do planejador ambiental Renato Tagnin.
"Segundo cientistas, a pior hipótese para o meio ambiente é o mercado tomar conta. Evidências, pesquisas e projeções mostram que esse formato de exploração dos recursos naturais para a reprodução do capital, da água principalmente, vai deixar um grande prejuízo, o chamado passivo ambiental, para esta e futuras gerações. Quando uma corporação se apropria de um recurso natural, seja qual for, não se preocupa com o que decorrerá dessa apropriação. Insere esse recurso em uma estratégia, na produção e distribuição de bens, e deixa para a sociedade o passivo. Vai ficar pra alguém resolver os problemas deixados por atividades econômicas", alertou.
Integrante da comissão técnico-científica do Movimento em Defesa da Vida do ABC e consultor do Ministério do Meio Ambiente para a elaboração da Estratégia Federal de Gestão Ambiental Urbana, Tagnin participou da mesa-redonda em defesa da água realizada na noite de ontem (14) pela Frente Parlamentar em Defesa da Billings, na Assembleia Legislativa de São Paulo.
O debate marcou a semana em que terão início dois grandes eventos internacionais para debater o tema. No sábado (17), terá início o Fórum Alternativo Mundial da Água (Fama 2018). Com o tema Água é um Direito e não Mercadoria, o evento realizados por movimentos e sindicatos visam a construção de uma aliança de resistência e uma agenda de lutas contra as privatizações e a mercantilização da água. E no domingo (18) começa o 9º Fórum Mundial da Água, que reúne representantes de governos e empresas – daí estar sendo chamado de "balcão de negócios" do setor, de olho no mercado e nos recursos hídricos do Brasil. Os dois encontros serão em Brasília.
Tagnin lembrou que sempre que o assunto é escassez e a desigualdade no acesso à água, o mercado logo se apresenta como "a solução que conseguirá regular e racionalizar o uso", o que é uma falácia, segundo ele. "A escassez e a degradação ambiental são iniciativas planejadas pelo próprio modus operandi das empresas e das grandes corporações."
E destacou a impunidade que beneficia o setor empresarial, que teria de vender seus produtos por preços "inimagináveis" e abrir mão de lucros para pagar multas relativas aos danos que causa. E que, ao contrário disso disso, além de não reconhecer o passivo social e ambiental, ficam com o "filé da lucratividade".
"Levantamentos em diversas partes do mundo mostram que, em geral, é muito mais compensador correr o risco de ser multado por uma inadequação, um problema, ou mesmo uma tragédia como a de Mariana ou de Barcarena, do que incluir no processo produtivo os cuidados para prevenção, as chamadas externalidades, que exigem mudanças nas margens de lucro. Preferem correr o risco de uma eventualidade, de uma multa, cujo valor comparado com os prejuízos causados é ridículo. Correr o risco e infringir a lei valem a pena e por isso se tornou regra".
Conforme lembrou o especialista, a concentração empresarial em todas as atividades que exploram os recursos naturais, com forte presença do capital financeiro, torna essas corporações ainda mais fortes e imunes.
"Temos hoje em dia em torno de 60 empresas que detêm a maior parte dos recursos. Uma concentração de renda, de poder, diante da qual os governos podem muito pouco em termos de regulação. Tanto que na crise de 2008, ninguém foi preso naquele grande estelionato financeiro. Os grupos são muito grandes para falhar e para botar na cadeia, alegam eles. Por isso, quando a Justiça e o estado reconhecem a impossibilidade de controlar, imaginem como será com nossos recursos essenciais, como a água, que mantém a vida, serem apropriados por essas corporações. É uma temeridade que esse poder de controle seja transferido a quem tem as práticas que tem, que estão documentadas e alertadas por cientistas há tempos", disse.
Tognin lembrou ainda que, ao considerar a iniciativa privada na regulação do chamado mercado da água, como defende o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) em seu Projeto de Lei do Senado (PLS) 495, de 2017, que altera a Lei nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997, para introduzir os mercados de água "como instrumento destinado a promover alocação mais eficiente dos recursos hídricos". Isso significa negar tragédias ambientais, como fontes exploradas até secar pela Nestlé, em São Lourenço, no sul de Minas Gerais, entre outras abafadas pela mídia comercial e pelos milhões que essas empresas investem em publicidade e propaganda.
Má gestão
"Estamos em um momento decisivo no país em relação a seus recursos hídricos. Em 2014 e 2015 sofremos os efeitos da crise hídrica com a ausência de chuvas e o descaso com o que são tratadas questões relacionadas à água, que deveria ser tratada como direito e não como mercadoria", disse o diretor de relações externas da Associação dos Profissionais Universitários da Sabesp, Amauri Pollachi.
Ele lembrou que a falta de investimentos na gestão dos recursos hídricos do governo de Geraldo Alckmin, que praticamente secou reservatórios que ainda não se recompuseram e expôs a insuficiente disponibilidade de água à população, em torno de 130 metros cúbicos por habitante por ano. "Uma disponibilidade tão pequena que para continuar o abastecimento é necessário importar água de outras bacias.
"Há projetos para trazer água da represa Jurumirim, em Avaré, do rio Itapanhaú, em Bertioga, além de outros, que enfrenta resistência das populações locais, que com razão temem o desabastecimento. Mas há dez anos se espera a regulamentação do uso da água pela agricultura, falta incentivo para outras formas de irrigação", disse.
Pollachi alertou ainda para retrocessos com a reforma regulatória do setor de saneamento, em que o governo de Michel Temer pretende alterar a lei de criação da Agência Nacional de Águas (ANA) e o Marco Regulatório de Saneamento. A ideia é para trazer o setor privado para o controle do setor, que virá por meio de medida provisória. O temor é que o saneamento, e o tratamento de água, sejam priorizados por essas empresas apenas em regiões mais lucrativas.
O diretor do Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente do Estado de São Paulo (Sintaema) José Mairton Pereira Barreto criticou sobretudo a gestão estadual que, sem consultar a população, prioriza grandes projetos de transposição. "Para evitar 'problemas futuros', busca-se trazer água do Paraíba do Sul, do São Lourenço, retirando água de outras bacias, com todo o impacto ambiental, social, quando se perde muita água com fissuras e vazamentos".
Ele destacou experiências de re-estatização do setor. "No mundo todo são mais comuns casos de volta do controle estatal da água, 267 casos no total. Só na França foram 106 casos recentes, e nos Estados Unidos, 51. Com essas experiências frustradas, que pioraram os serviços e aumentaram as tarifas, as empresas vêm para o nosso país".
Participaram ainda do debate o integrante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e da Frente Brasil Popular Gabriel Gonçalves, o presidente da CUT São Paulo, Douglas Izzo, e os deputados da bancada do PT Luiz Fernando, Teonílio Barba, Marcos Martins e Ana do Carmo, coordenadora da Frente Parlamentar em Defesa da Billing, que presidiu a mesa.