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Após eleição de Bolsonaro, convivência democrática se torna desafio

A sociedade brasileira, que optou por um tiro no escuro nas eleições, terá de encontrar saídas democráticas para construir a compreensão de que todos devem conviver em paz, diz pesquisador da USP

Publicado: 01 Novembro, 2018 - 14h37 | Última modificação: 01 Novembro, 2018 - 16h56

Escrito por: Tatiana Melim

Reuters
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Diversos casos de violência motivados por divergências políticas ou estimuladas por pronunciamentos incendiários do presidente eleito Jair Bolsonaro, que chegou até a falar em um discurso “vamos fuzilar a ‘petralhada’ aqui do Acre”, foram registrados no Brasil depois de confirmada a vitória do candidato de extrema direita.

O processo eleitoral deste ano trouxe para a disputa política o conflito e o clima de guerra, “e, com a ascensão de Bolsonaro e a eleição de diversos policiais militares ao Congresso, as pessoas veem a oposição como uma ameaça e o uso da força como uma autoridade a ser utilizada”, analisa o professor e pesquisador no Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), Bruno Paes Manso.

Para o pesquisador, o grande desafio da sociedade brasileira, que optou por dar um salto no escuro nas eleições deste ano, é lidar democraticamente com o avanço do discurso que legitima a violência. “Será um grande desafio encontrar saídas democráticas para desarmar ‘os espíritos’ e construir o entendimento de que todos podem e devem conviver pacificamente, com suas ideias e visões de mundo”.

De alguma forma, teremos de mostrar que esse é o tipo de convívio coletivo que cabe em uma sociedade democrática que respeita as individualidades
- Bruno Paes Manso, pesquisador USP

Por enquanto, o número de ocorrências, que vão de ameaças, intimidações, agressões físicas, incêndios nos acampamentos do MST, em escolas e posto de saúde e até a morte de uma criança de oito anos, vítima de bala perdida, mostram que os brasileiros não estão preparados para este desafio.

Na véspera das eleições, no sábado (27), um jovem de 23 anos, filho de uma dirigente sindical cutista, foi assassinado a tiros em Pacajus, na região metropolitana de Fortaleza. Charlione Lessa Albuquerque participava de uma carreata a favor de Fernando Haddad, candidato do PT à presidência da República. Um homem não identificado desceu de um gol branco e disparou três tiros no jovem, que estava parado no congestionamento.

Na noite dessa terça-feira (30), a Polícia Militar de São Paulo reprimiu com violência uma manifestação pacífica pela democracia e contra “as declarações antidemocráticas de Bolsonaro”, na Avenida Paulista. Além de atingir os manifestantes com balas de borracha e bombas de gás lacrimogênio, prenderam quatro adolescentes que participavam do ato e continuam detidos na Fundação Casa, no bairro do Brás.

Os jovens são acusados de dano qualificado, incêndio e desacato “por pedirem o fim da Polícia Militar”, segundo a observadora jurídica e advogada dos adolescentes, Maira Pinheiro, que acompanhou a manifestação e concedeu entrevista ao Brasil de Fato.

Na mesma noite em que os manifestantes foram reprimidos, o acampamento Comuna Irma Dorothy, localizado em Tamboril, no Ceará, foi incendiado. De acordo com as famílias acampadas, quatro homens se aproximaram, atearam fogo próximo aos barracos e saíram aos gritos.

Adversários políticos viram inimigos a serem aniquilados

Para o professor e pesquisador no Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), Bruno Paes Manso, quando Bolsonaro afirma que a oposição terá de sair do país e usa as palavras comunismo, oposição e corrupção como se fosse uma coisa só ou simplesmente o sinônimo do “bandido a ser combatido”, estigmatiza os adversários políticos como inimigos.

Quem não concorda com as posições de Bolsonaro e seus seguidores pode facilmente ser taxado de comunista que defende a corrupção e afronta a família e as instituições
- Bruno Paes Manso, pesquisador USP

Segundo o professor, o termo bandido, utilizado há mais de 40 anos para classificar àqueles que representam uma ameaça nas grandes cidades e precisam ser combatidos, foi transferido para a política.

“O bandido, que sempre foi muito usado como bode expiatório para legitimar o uso da força diante do discurso de ameaça às instituições, agora está presente na disputa política. Tudo foi colocado no mesmo balaio, tornando a linguagem muito violenta”.

E é justamente essa linguagem violenta a que o pesquisador se refere que tem crescido e assustado muitas pessoas, como o caso da declaração racista e violenta de um estudante de Direito do Mackenzie, Pedro Bellintani Baleotti, que gravou um vídeo no último domingo (28) dizendo que estava “indo votar ao som de Zezé, armado com faca, pistola, o diabo, louco para ver um vadio, vagabundo com camiseta vermelha e já matar logo. Tá vendo essa negraiada? Vai morrer! Vai morrer! É capitão, caralho”.

Relatos de violência explodem no país

Relatos de violência também foram registrados no Recife, em Pernambuco, após a divulgação do resultado das eleições presidenciais. Nos bairros da Várzea e Coqueiral, na zona oeste da cidade, eleitores de Bolsonaro comemoram o resultado com vários disparos de tiros para o alto. Em um bar no bairro do Santana, na zona norte de Recife, um grupo de pessoas foi hostilizado e teve de pagar a conta e ir embora do local devido às ameaças que receberam de eleitores do Bolsonaro.

No bairro da Encruzilhada, um integrante da torcida organizada do Santa Cruz sofreu graves ameaças e intimidações por um grupo que disparou fogos de artifício em direção a sua casa. “Vamos matar os vermelhos”, ameaçou o grupo que atacou a casa do militante do Democracia Santacruzense, organização política formada por torcedores do Santa Cruz que usam futebol para discutir política.

Na Bahia, Janaína Barata, de 19 anos, foi agredida por policiais militares em Salvador. O ato foi registrado em vídeo e divulgado nas redes sociais. Também na capital baiana, quatro pessoas foram baleadas no bairro da Barra. O soldado Manoel Landulfo Sampaio sacou uma arma e deu vários tiros após discutir com um ambulante. As quatro pessoas feridas foram encaminhadas para hospitais da região. 

O risco à democracia e o avanço de milícias

O pesquisador da USP alerta, ainda, que quando o Estado autoriza e flexibiliza o uso da força por qualquer grupo da sociedade, como propõe Bolsonaro ao querer armar toda a população, abre mão do “monopólio do uso legítimo da força” e, com isso, abre margem para a criação de milícias armadas, como as criadas no Rio de Janeiro.

“Isso pode colocar em risco democracias frágeis, como as da América Latina”, diz Bruno Paes Manso, citando a Colômbia e o México, que trataram com tolerância grupos paramilitares. “Essas milícias usaram a autorização da violência para se legitimar e, como passo seguinte, atuar para ganhar dinheiro e tirar vantagens próprias. Agora influenciam grupos consideráveis e colocam a democracia mais em risco do que os próprios traficantes tidos como bandidos e inimigos do Estado”.