Escrito por: Redação RBA
Desde 2019, as armas são cada vez mais comuns nas ruas, casas, festas, escolas e até nas igrejas. Nas mãos do crime, mas também de pais e até crianças
Desde que chegou ao poder em 2019, Jair Bolsonaro (PL) editou mais de 40 decretos para facilitar o acesso da população civil às armas, escancarando um mercado que registra média de cerca de 1.300 armas compradas por brasileiros por dia. O relatório é do Instituto Sou da Paz.
Nessa busca frenética para facilitar a aquisição de armamentos, proporcionando uma alegria para as indústrias de armas e munições como nunca ocorreu na história do país, o número de novas armas nas mãos de civis explodiu. Em 2018, um ano antes de Bolsonaro ser eleito, havia 350 mil armas registradas em nome de colecionadores, atiradores e caçadores (os chamados CACs), número que passou para 1 milhão em julho de 2022. Ou seja, triplicou. A Taurus, principal fabricante de armas do Brasil, teve lucro líquido de R$ 307 milhões em 2018. Em 2021 lucrou R$ 1,3 bilhão, um aumento de 323%.
Pelos decretos do governo, o uso dessas armas deveria se restringir a clubes fechados de tiro, que por sua vez se multiplicam, para o prazer dos bolsonaristas, que compõem o principal público comprador desse tipo de produto. Mas o problema é que muitas delas estão indo parar nas mãos de criminosos, numa ameaça crescente às famílias do país.
Há cada vez mais gente armada – e atirando – nas ruas, nas festas, no carro, em casa, nas escolas, em todo lugar. Um verdadeiro faroeste, uma terra sem lei. Buscas em sites de notícias sobre disparos a esmo nas ruas mostram inúmeros casos. Na última quarta-feira (7), dois jovens foram atingidos por disparos enquanto caminhavam à tarde por uma rua no Bairro Santa Rita, zona leste de Juiz de Fora (MG). Segundo as vítimas, que foram atingidas nos braços, os atiradores passaram em uma moto, atirando a esmo, sem alvo determinado.
Um crime que, salvo as devidas proporções, lembra um cometido no mesmo dia em Memphis, no Tennessee, Estados Unidos. Segundo a polícia, um jovem de 19 anos atirou a esmo contra diversas pessoas, matando quatro, enquanto dirigia pelas ruas cidade. Parte da ação foi transmitida ao vivo pelas redes sociais. O Tennessee é um dos 25 estados que dispensam a licença para o porte de armas naquele país notabilizado pelos ataques a escolas, que já causaram a morte violenta de centenas de crianças, professores e funcionários.
Os decretos, as armas e as tragédias familiares
Com Bolsonaro, a facilidade de acesso às armas está provocando também tragédias familiares, com traumas irrecuperáveis. Quando não coloca a criança na frente da bala, coloca seu dedo no gatilho. Na noite de 8 de agosto, um menino de 8 anos, que brincava com uma arma deixada pelo cunhado no banco de trás do carro, acertou um tiro acidental e matou o dono da arma, em Jacareí, interior de São Paulo. O homem, que havia parado para pegar uma outra criança, de 5 anos – tinha licença de CAC. A arma estava carregada com 12 projéteis.
Em maio, uma criança de 4 anos levou uma arma para a escola, no Capão Redondo, zona sul da capital paulista. Segundo a polícia, a arma era do pai da criança e foi apreendida. A história não teve um grave desfecho porque a professora percebeu o momento em que a arma foi retirada da mochila e colocada em cima da mesa para mostrar ao amigo. Ela recolheu o revólver e chamou a polícia e o conselho tutelar.
No final de maio, em Formosa (GO), um menino de 11 anos morreu atingido por um disparo acidental pelo próprio pai, dentro da casa da família. Segundo a Polícia Civil, o homem foi encontrado por policiais com o filho morto no colo e com um ferimento de bala no próprio rosto, em uma tentativa de suicídio. Atirador esportivo, tinha quatro armas registradas em seu nome.
Em 24 de agosto, um homem de 28 anos foi preso e confessou ter atirado contra parentes. Os tiros atingiram um bebê de apenas 11 meses, que morreu, e outros quatro familiares, três deles adolescentes. Conforme a polícia, o crime, que ocorreu em um bairro de Brumadinho (MG), o atirador era dependente de drogas, se negava a ser tratado, mas mesmo assim conseguiu comprar o armamento.
Fiel atira em fiel em igreja evangélica
O aumento da circulação das armas, associado ao aumento da violência, permite situações até então inusitadas. No último dia 2, em Goiânia, um policial militar acertou com um tiro a perna de um “irmão de fé” dentro de um templo da Congregação Cristã no Brasil, das mais conservadoras. O atirador saiu em defesa do pastor, que havia dito aos fieis não votarem em “candidatos vermelhos”. Como o outro frequentador do templo não concordou, levou bala do agent,e que nem em serviço estava.
A onipresença do porte de armas também está por trás do aumento da violência política. Em 9 julho, o bolsonarista Jorge Guaranho invadiu a festa de aniversário do dirigente do PT em Foz do Iguaçu (PR) Marcelo Arruda. Entrou atirando e matou o aniversariante. O assassinato levou parlamentares da oposição a pedir ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a proibição de armas nos dias que antecedem as eleições.
No pleito de 2018, bolsonaristas postaram nas redes sociais fotos com armas sobre a urna eletrônica mostrando o voto no então candidato à Presidência da República pelo PSL.
O TSE acolheu, alegando que armas e votos não combinam, e proibiu o porte em até 100 metros dos locais de votação nos dias de eleição, nas 48 horas anteriores e nas 24 seguintes. A probição vale para militares, exceto agentes de segurança em serviço que tenham sido convocados pela autoridade eleitoral competente. Na decisão, o tribunal considerou a explosão de armas e munição em circulação, a maioria delas sem controle.
A irresponsabilidade de Bolsonaro com o descontrole das armas, lembra o Instituto Sou da Paz, alimenta um ciclo de tragédias e violência que tem como maior alvo os moradores das periferias, mulheres, jovens negros e a população LGBTQIA+. Chamando atenção para o problema, a entidade lançou na última semana um vídeo de um minuto de duração que mostra, em câmera lenta, a trajetória de uma bala antes de chegar a uma criança.
Intitulado “A mão que assina é a mesma que aperta o gatilho”, o vídeo destaca em sua legenda que mais de 40 regras publicadas desde 2019 facilitaram o acesso às armas no Brasil. Que 994 milhões de munições foram vendidas – o que representa quase cinco tiros para cada brasileiro. “O limite passou para até seis armas por pessoa e 1200 munições por ano. E tudo começou com uma caneta”, diz o instituto.
Civis com armas militares
Pelos cálculos do Instituto Sou da Paz, todas as medidas do governo de Jair Bolsonaro (confira lista no final da reportagem) permitiram que cidadãos comuns possuam armas que antes restritas às polícias, tenham permissão para adquirir um número muito maior de armas e munições e possam andar armados em lugares públicos. Os decretos também armaram criminosos, já que diminuíram a fiscalização para impedir que armas e munições sejam desviadas.
“Essas mudanças foram feitas na canetada, sem passar pelo Congresso Nacional e sem nenhum debate com a sociedade. Como resultado, hoje são mais de mil novos registros diários de armas para civis e mais de 855 milhões de munições foram vendidas nos últimos três anos e meio. A cada dia são mais de 1.300 novas armas compradas por civis. Muitas delas já foram desviadas e pararam nas mãos do crime’, afirma o Instituto.
Bolsonaro, que é candidato à reeleição e chegou a questionar se para uma mulher de periferia, vítima de violência, se uma arma não seria mais importante do que a Lei Maria da Penha, aumentou para seis o limite de armas que as pessoas podem comprar. E sem a necessidade de justificativas para isso. Ampliou também a quantidade de munições na autorização de compra de 50 para 200 munições por ano para cada arma.
Armas potentes, de uso militar, também puderam ser compradas por civis. Antes eram apenas de média potência, como revólveres e pistolas. Mas pessoas comuns tiveram acesso a calibres quatro vezes mais potentes, antes restritos às forças de segurança. O grupo dos chamados caçadores, atiradores e colecionadores (CACs) teve limite aumentado, podendo comprar fuzis semi-automáticos. E o limite de armas passou de 12 para 30, incluindo 15 de calibre restrito, como fuzis. Atiradores esportivos, que podiam comprar até 16 armas, foram autorizados a 60, incluindo 30 de calibre restrito.
Para tanta arma, o limite de munições saltou para 5 mil por ano por arma de calibre permitido e até mil por ano por arma de calibre restrito. Esta categoria também passou a ter mais facilidade para fabricar munições não rastreáveis em casa.
Com Bolsonaro, “cidadão de bem” pode andar armado
Um dos decretos prevê que CACs podem portar uma arma de fogo municiada e carregada no trajeto entre o local de guarda autorizado e os de treinamento, instrução, competição, manutenção, exposição, caça ou abate. Na prática, isso é uma permissão para circular nas ruas armado, o que é permitido pela legislação apenas a algumas categorias profissionais.
O controle para a compra de armas também foi reduzido, com dispensa da justificativa para a Polícia Federal e aumento, de 3 para 10 anos, do prazo para entrega de atestados de antecedentes, teste psicológico e teste de tiro, conforme a lei de armas. Bolsonaro também mandou o Exército revogar portarias que melhoravam a marcação e rastreabilidade de armas e munições, ação fundamental para prevenir desvios e esclarecer crimes pelas polícias.
Para completar, o governo Bolsonaro reduziu o orçamento do Exército para fiscalizar fábricas e lojas de armas e munições, além de clubes de tiros, CACs e comércio de explosivos. Os recursos caíram de R$ 3,6 milhões em 2018 para R$ 1,7 milhão em 2021.
O Instituto Sou da Paz enumera uma série de impactos trazidos pelas medidas de Bolsonaro. E nada tem a ver com a propalada segurança que só uma arma é capaz de garantir. Os desvios de armas para o crime se tornaram mais frequentes. Enquanto em 2015, em média, 31 armas de CACs eram furtadas ou roubadas por mês no país, o número saltou para 112 em 2022. Pesquisa do Instituto Sou da Paz mostra que entre 2011 e 2020, só no estado de São Paulo, 9 armas por dia saíram das mãos de proprietários legais e foram parar nas mãos de criminosos.
Segundo o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, houve aumento da proporção de mulheres mortas e que sofrem violência com arma de fogo. O risco para mulheres, que em geral são vitimadas por companheiros, ex-companheiros e conhecidos, aumentou com mais armas em casa. Em 2020, do total de feminicídios, 26% foram cometidos com arma de fogo. Em 2021, o número subiu para 29%.
No último dia 6, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin atendeu de maneira liminar e parcial três ações diretas de inconstitucionalidade para limitar a posse de armas e a quantidade de munições que podem ser adquiridas, movidas pelo PT, Rede e o PSB. O ministro considerou a proximidade das eleições, que terá o primeiro turno no próximo dia 2.
Argumentando que o “risco de violência política torna de extrema e excepcional urgência a necessidade de conceder o provimento cautelar”, Fachin determinou que a posse de arma de fogo só pode ser autorizada às pessoas que demonstrem concretamente a efetiva necessidade, por razões profissionais ou pessoais. E que a aquisição de armas de fogo de uso restrito só deve ser autorizada no interesse da segurança pública ou da defesa nacional, não em razão do interesse pessoal.
Ainda segundo Fachin, os limites quantitativos de munições adquiríveis devem se limitar aos que, de forma diligente e proporcional, garanta apenas o necessário à segurança dos cidadãos. E que a atividade regulamentar do Poder Executivo não pode criar presunções de efetiva necessidade além das já disciplinadas em lei. A seu ver, a necessidade de uso de arma de fogo deve ser sempre concretamente verificada, e não presumida.
Portanto, até que o plenário do STF julgue o mérito das ações e declare a inconstitucionalidade dos decretos de Bolsonaro, ou melhor, facilitam o acesso às armas, o faroeste brasileiro segue, ironicamente, sob os auspícios da regulamentação do Estatuto do Desarmamento.
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