Escrito por: CUT-RS
A pedalada começava diariamente ao raiar do sol, às 5h da manhã, e seguia até as 11h. Após uma parada para almoço, o trajeto era retomado por volta das 15h e se estendia até quase o anoitecer, às 19h
Ao longo de 30 dias, o historiador e assessor da CUT-RS, João Marcelo Pereira dos Santos, de 57 anos, e o educador popular e ativista ambiental Pedro Figueiredo, de 63 anos, atravessaram seis estados e pedalaram 2.200 quilômetros, incluindo a entrada em cidades para pernoite.
A pedalada começava diariamente ao raiar do sol, às 5h da manhã, e seguia até as 11h. Após uma parada para almoço, o trajeto era retomado por volta das 15h e se estendia até quase o anoitecer, às 19h.
“Quando saímos de Porto Alegre, tomamos caminhos diferentes. Enquanto eu fui pela BR-101, que passa pelo Litoral, Pedro partiu pela BR-116, subindo a Serra. Em Ponta Grossa, no Paraná, passamos a pedalar juntos”, contou João Marcelo, que é também professor de Sociologia do Trabalho, na Escola Técnica Mesquita, do Sindicato dos Metalúrgicos da Grande Porto Alegre.
Ele lembrou que, depois de cruzar os três estados da região Sul, passaram pelo interior de São Paulo (Ourinhos, Marília, Lins, Ubarana e Nova Granada), Minas Gerais (Prata, Uberlândia e Araguari) e Goiás (Catalão, Campo Alegre, Cristalina e Luziânia), antes de chegar a Brasília.
"É um tempo novo, uma esperança de que as coisas se modifiquem no país. É com essa esperança que nós viemos conhecer um pouco o Brasil", disse Pedro.
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Caminhoneiros uberizados
João Marcelo relatou que no percurso ele puderam conhecer várias situações de trabalho e identificar a precarização que cresceu após a reforma trabalhista do golpista Michel Temer (MDB), em 2017, e a reforma da previdência do governo Bolsonaro (PL), em 2019.
“Tivemos contato direto com dezenas de caminhoneiros, desde a parada em Terra de Areia, no Rio Grande do Sul, até Morretes e Ponta Grossa, no Paraná. “São trabalhadores solitários, que têm saudades de suas famílias, passam horas e horas nas estradas e possuem uma cultura de valorização da categoria, pois eles são milhares e transportam o que se produz no Brasil”, destacou.
“Assim como o metalúrgico se sente importante para o país, os caminhoneiros têm esse mesmo sentimento da importância que eles desempenham para a economia e para que o Brasil vá para frente”, explicou.
João Marcelo apontou as diferentes formas de contratos. “Tem o caminhoneiro empregado das grandes empresas de transporte, tem aquele que trabalha em empresas menores e tem o autônomo que fica à mercê da carga, que o Pedro caracterizou como a galera uberizada. Porque eles colocam o veículo, a força de trabalho e dependem da contratação de cargas.”
“Encontramos um caminheiro parado há uma semana com o caminhão sem carga por causa das chuvas, que não estava ganhando nada, apenas gastando dinheiro para se manter”, relatou.
“Os postos de parada não são bem equipados e estão sob controle dos donos dos postos de gasolina, que via de regra são bolsonaristas. São eles que fazem limpeza e higienização, têm restaurante e fornecem alimentação. Não é à toa que o terrorista que tentou fazer um atentado no aeroporto de Brasília é um dono de posto de gasolina”, disse.
Para o historiador, “se o caminhoneiro é predominantemente masculino, nos hotéis e pousadas prevalece o trabalho feminino. São atendentes, camareiras e o pessoal que prepara o café da manhã. Conversamos muito com essas mulheres, sempre bem recepcionados e atendido. Na sua maioria, elas têm carteira assinada, mas com salários baixíssimos”.
Latifúndio destrutivo
“Vimos também o quanto o latifúndio é destrutivo. Nada floresce na sua volta, absolutamente nada. Vimos o predomínio da monocultura de soja, desde o Rio Grande do Sul. Soja, soja e soja até as bordas de Luziânia, em Goiás. Também vimos muitas plantações de milho e cana de açúcar. Ah, e o eucalipto. Você não tem ideia das árvores de eucalipto para celulose. É a bola da vez. Na fronteira entre Minas e São Paulo há também o cultivo de frutas, como laranja e abacaxi”, observou João Marcelo.
Ele verificou que “as pequenas cidades na volta desses latifúndios são entrepostos para tornar o agronegócio possível. Lá ficam os boias frias, invariavelmente jovens, que trabalham nas lavouras, na vigilância de entradas das fazendas e como motoristas de veículos e tratores. Há ônibus que levam esses trabalhadores na madrugada para as fazendas, onde trabalham das 7h às 16h”.
“Muitos são oriundos das regiões Norte e Nordeste. Alguns têm carteira assinada, outros possuem contratos temporários. Todos vieram com aquela ideia de ganhar um dinheirinho e voltar para a sua terra. É também um pessoal que padece da saudade, de deixar as suas coisas, suas culturas e suas raízes. É uma realidade muito cruel e dolorida”, constatou.
Segundo João Marcelo, “todo o trajeto que fizemos foi por rodovias privatizadas. Mas como ciclistas não pagamos pedágios. Como em final de ano aumenta a circulação de turistas, as empresas estão fazendo a manutenção das estradas.
“Encontramos uma galera trabalhando com roçadeiras, cortando mato. A gente parava para conversar com eles e puxava assunto. Eles usavam aqueles equipamentos de segurança com um calor insuportável, trabalhando seis a oito horas por dia. E todos eram jovens”, revelou.
Rede de apoio e solidariedade
“Tivemos apoio de uma rede de solidariedade, através de um grupo no whatsapp formada por amigos e dirigentes sindicais, o que nos manteve conectados e garantiu também uma arrecadação financeira que nos ajudou a pagar as nossas despesas para chegarmos a Brasília”, agradeceu João Marcelo.
Ele rejeita o rótulo de heróis. “Não tem essa de heroísmo. Pedalar é uma possibilidade de lazer, é barata, não custa caro, está ao alcance de todo mundo – crianças, jovens e idosos. Quando você pedala se desconecta das redes sociais. Isso faz bem para um grupo de amigos ou um grupo de família. Não tem como pedalar e estar conectado no celular. E você começa a ver a natureza com outros olhos. Por isso, desmanchamos essa ideia de heroísmo”, frisou.
Muita energia para reconstruir o Brasil
“A gente não veio apenas para a posse de um líder, apesar de reconhecer o papel histórico do Lula. A gente veio para a posse de um projeto e tem acentuado três coisas: a democracia, a inclusão social e a reconstrução do Brasil”, acentuou João Marcelo.
“É preciso incluir esse Brasil silencioso, escondido. Esse Brasil que a gente não vê, invisível, mas ele existe e é real. E estamos dispostos a reconstruir o Brasil”, enfatizou.
A pedalada, segundo João Marcelo, “é um símbolo de que nós precisaremos de muita energia para reconstruir o país. Não será um passeio no parque, mas será um passeio de milhares de quilômetros em alguns anos porque a destruição foi imensa”.
Assista à reportagem do Sinproep-DF