Aprovação de organismos transgênicos mais do que duplica no governo Bolsonaro
Até setembro foram liberadas 22 plantas, dobro da média anual desde o golpe de 2016. Ação que questiona CTNBio está no STF há 14 anos
Publicado: 28 Outubro, 2019 - 12h49 | Última modificação: 28 Outubro, 2019 - 12h56
Escrito por: Cida de Oliveira, da RBA
A liberação de transgênicos no Brasil disparou no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro (PSL). Até setembro, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) havia dado sinal verde para 22 novas plantas geneticamente modificadas, conforme dados do Conselho de Informações sobre Biotecnologia (CIB), organização não-governamental de caráter técnico-científico que se dedica a difundir questões relacionadas à biotecnologia.
À primeira vista o número pode parecer pequeno, mas a comparação com períodos anteriores mostra o contrário. Nos últimos três anos, período entre o golpe que destituiu a presidenta Dilma Rousseff (PT) e imprimiu velocidade ao atendimento da agenda ruralista, e a eleição de 2018, foram liberadas 32 novas plantas. A média anual – 10,6 – corresponde a menos da metade do que se liberou de janeiro a setembro. Já no período anterior, de 1998 a 2015, foram autorizados ao todo 53 novas plantas.
Ainda segundo o informe conselho, nos primeiros nove meses do ano foram liberados também sete micro-organismos transgênicos. Entre eles, leveduras usadas para obtenção de diesel a partir da cana-de-açúcar, por exemplo. De 1998 para cá, foram aprovados no Brasil 176 eventos geneticamente modificados (GM). Desse total, a maioria (60,8%) são plantas. As vacinas correspondem a 21,6% das liberações, os micro-organismos a 16,4%, e medicamentos e insetos, cada um, a 0,6%.
As variantes vegetais GM, que em setembro totalizaram 107 já liberadas no país, são as mais polêmicas. São desenvolvidas para atender ao cultivo de soja, milho, algodão, eucalipto e cana em grandes extensões de terra. Em geral são desenvolvidas por empresas multinacionais como a Bayer, que ano passado comprou a Monsanto – até então a gigante absoluta do setor –, além da Basf, Dow e Syngenta, entre outras.
Em 2011 foi dado aval para um feijão carioca, criado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), que traz uma toxina mortal para um vírus que ataca a planta. Desde então, a empresa, vinculada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) vem protelando o lançamento da semente. Com mecanismo de ação inseticida semelhante, uma cana transgênica letal para uma praga chamada broca da cana, foi aprovada em 2017.
Mas a grande maioria dessas plantas é modificada geneticamente para sobreviver a doses cada vez maiores de agrotóxicos, inclusive combinados. Isso porque as plantas alvo desses produtos, que os agricultores chamam de “invasoras”, vão ficando resistentes aos venenos agrícolas. E para dar conta, as doses vão sendo aumentadas, matando também as lavouras semeadas.
Essa é uma das razões desse tipo de manipulação genética. O outro é garantir o uso cada vez maior dos agrotóxicos, que são produzidos pelas mesmas companhias. É o lucro casado que tende a aumentar. Até a edição desta reportagem, o governo Bolsonaro já havia concedido registro para 410 novos venenos.
Entre 2000 e 2012, a área cultivada de soja transgênica no país cresceu 124% e o consumo de agrotóxicos subiu 310,71%. Nem por isso se produziu mais. O incremento na produção foi de apenas 9,5% e agricultura tornou-se muito mais cara para os agricultores a partir do advento do transgênico.
“Aumenta-se o uso de transgênicos, que predomina em praticamente todo o campo, contaminando tudo, o uso de venenos, mas não aumenta a produtividade. É possível fazer controle de pragas com sistemas biológicos, mas não interessa porque não dão lucro como os OGMs, um negócio lucrativo que gera escravidão”, afirma Frei Sérgio Görgen, liderança do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e organizador do livro Riscos dos Transgênicos (Editora Vozes).
Não é à toa que o mercado de transgênicos tem tudo a ver com o de agrotóxicos e vice-versa. E falar de um ou de outro é falar de danos à saúde e ao meio ambiente. Primeiro porque há inúmeros riscos inerentes ao processo de manipulação genética, que são desprezados. E segundo por causa do que já se sabe sobre os males causados pelos agrotóxicos.
Mal de toda natureza
O Instituto Nacional do Câncer (Inca), vinculado ao Ministério da Saúde, e diversas instituições de pesquisa nacionais e internacionais já estabeleceram a associação entre a exposição a esses produtos e o aumento do número de casos de diversos tipos de câncer, malformações congênitas, inclusive microcefalia e anencefalia, alterações endocrinológicas que levam a uma série de outras, inclusive reprodutivas, e distúrbios dos sistema nervoso central e até digestivo, que direta ou indiretamente estão associadas a processos degenerativos e do desenvolvimento, como Parkinson e autismo. O perverso é que o setor que provoca doenças e danos ambientais incalculáveis, onerando o Estado, e o mesmo beneficiado com subsídios tributários.
No entanto, nada disso é considerado pelos votos vencedores dentro CTNBio. Desde que foi criado para assessorar o governo federal na formulação, atualização e implementação de políticas para os transgênicos, o órgão deu parecer favorável a todos os pedidos apresentados pelas indústrias. Estudos apresentados pelos setores interessados na liberação, inclusive aqueles com falhas metodológicas apontadas com cientistas sempre foram aceitos sem questionamentos. Já posições pautadas na dúvida e na necessidade de mais estudos sempre foram desqualificados e desprezados, conforme declarou à RBA o ex-integrante Antônio Andrioli.
Reprodução/CIB
Descaso
Decisiva na consolidação do Brasil como o maior consumidor mundial de agrotóxicos, a farra das lavouras transgênicas não é a única a expor falta de rigor científico no âmbito da CTNBio. No começo de setembro, um estudo divulgado no Scientif Report, do grupo Nature, relatou que foram detectadas porções de genes de mosquitos geneticamente modificados (GM) em mosquitos selvagens no município de Jacobina (BA).
Na localidade havia sido feita experiência com Aedes GM autorizada pela comissão de biossegurança, cuja maioria dos seus integrantes aceitou, sem questionar, os argumentos da empresa responsável pela produção desses insetos, a Oxitec. Entre eles, de que todos eles esses morreriam antes de entrar na idade reprodutiva e não se perpetuariam no ambiente.
E no processo de liberação da primeira linhagem do Aedes, a maioria dos cientistas da CTNBio achou suficiente um dossiê apresentado pelo proponente, elaborado por Renaud Lacroix, um diretor da própria empresa. Em 2017, a comissão liberou a segunda linhagem do inseto. Para cientistas ouvidos na época pela RBA, era a Oxitec admitindo que a tecnologia usada em Jacobina e Juazeiro, na Bahia, Piracicaba (SP) e Juiz de Fora (MG) não funcionava na redução de populações selvagens do aedes transmissor do vírus causador da dengue, Zika e Chikungunya.
Integrante do Movimento Ciência Cidadã e coautor do do Atlas do Agronegócio, o agrônomo Gabriel Bianconi Fernandes não não poupa críticas à estrutura e funcionamento da comissão que negligencia seu dever de zelar pela biossegurança no país. “O acolhimento, sem questionamentos, de estudo feito por interessado e o desprezo pela literatura científica apresentada em parecer contrário e derrotado na própria comissão, já mostra evidente viés e descaso”.
E aponta falhas e irregularidades na soltura dos mosquitos GM no episódio relatado em estudo na Scientif Report, principalmente quanto ao fato de ter rebaixado o nível de risco biológico, que caiu de 2 para 1. Ou seja, foi classificado como menos perigoso mesmo sem a devida justificação técnica. Para ele, caberia à Anvisa registrar o inseto que comercialmente foi batizado de “Aedes do Bem” assim que que a CTNBio liberou os liberou.
“Acontece que essa tecnologia era nova e não se enquadrava em nenhuma das normas da agência reguladora. Para não perder tempo nem as oportunidades de convênio com prefeituras interessadas em comprar os mosquitos, a empresa passou a fazer novas ‘liberações experimentais’ pelo país, que tinham o mesmo efeito prático de liberações comerciais. Tudo com aval da CTNBio. E por fim, a revista Nature confirma que os mosquitos transgênicos cruzaram com os nativos nessas áreas e geraram um novo híbrido cujos efeitos sobre as pessoas e sobre a propagação de dengue e Zika, por exemplo, são desconhecidos. Essa possibilidade foi apresentada no parecer rejeitado pela CTNBio”.
E vai além: “Considerando que os danos detectados até o momento haviam sido antecipados e tecnicamente justificados, podemos estar diante de um caso de negligência, imperícia ou imprudência”, pondera, referindo-se à abelha africana, que se espalhou pelo país a partir de um experimento que vazou de uma universidade décadas atrás e estão aí até hoje. “Diante do que já se sabia e agora com esses fatos novos, entendo que a decisão que liberou o mosquito deve ser anulada e que a empresa deve ser responsabilizada e suspender a soltura dos mosquitos. Além disso, deve implementar um amplo plano de monitoramento das populações do mosquito e da saúde dos moradores de todas as áreas onde soltou os mosquitos e adjacências”.
Inconstitucional
Para o agrônomo, o Judiciário perde a oportunidade de proteger a população e evitar muitos danos ambientais. Ele se refere ao à Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3526) proposta ao Supremo Tribunal Federal (STF) em junho de 2005 pela Procuradoria-Geral da República. O então procurador-geral, Claudio Fonteles, acolheu representação do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e do Partido Verde (PV), que contesta 24 dispositivos da Lei de Biossegurança (Lei nº 11.105/05).
Em resumo, a lei retirou competências da União, sobretudo do Ibama e da Anvisa, e quebrou o Sistema Nacional de Meio Ambiente ao concentrar as decisões sobre transgênicos nas mãos da CTNBio – uma supercomissão com poder de dar a palavra final sobre o tema é o sonho de consumo e principal demanda do setor de transgênicos na época da discussão da lei no Congresso, 15 anos atrás.
“Garantindo uma comissão com poder deliberativo, a indústria garantiria uma rápida e descomplicada liberação dos transgênicos. E foi isso que aconteceu. Assim, podemos dizer, que os demais problemas da lei decorrem dessa concentração de poderes. Estados e municípios, por exemplo, não podem atuar sobre o tema. O Conselho Nacional de Biossegurança, criado pela mesma lei, deveria ser instância superior voltada para a formulação de uma política para o setor no país e para a avaliação dos impactos socioeconômicos dos transgênicos. Para se ter uma ideia da omissão gritante desse órgão, nos seus 14 anos desde que foi criado ele se reuniu apenas duas vezes. Na primeira delas, enquadrou Ibama e Anvisa, que haviam questionado a avaliação técnica da CTNBio que em 2007 liberou as primeiras variedades de milho transgênico. Nunca mais esses órgãos apresentaram um recurso. Na segunda reunião, emitiu duas meras orientações que nunca saíram do papel”, conta Gabriel.
Entre outros problemas envolvendo o funcionamento da comissão questionada no STF, segundo ele. estão a falta de transparência, de publicidade e de participação. Tantos que documentos, de interesse público, não estão disponíveis para consulta. Muitas informações, inclusive, são protegidas por sigilo e a sociedade nunca conseguiu indicar todos seus representantes para a comissão. Atualmente as duas vagas de especialistas em defesa do consumidor estão em aberto.
Sem contar os conflitos de interesse envolvendo integrantes e as empresas que ali solicitam autorização para seus produtos. “Umas questão que nunca foi encarada de frente. Tanto que pesquisadores com interesses no desenvolvimento dos transgênicos podem participar da CTNBio e de suas decisões. “Ou seja, como já sabíamos em 2005, é uma lei feita para beneficiar as empresas do setor e não oferece nenhum tipo de garantia de proteção dos consumidores nem do meio ambiente. Agora, se os questionamentos da ADI tivessem sido julgados e acatados, acredito sim ser possível se especular que hoje o Brasil não estaria nesse mar de agrotóxicos e nem os agricultores de norte a sul do país estariam sendo prejudicados pela contaminação transgênica de suas sementes de milho crioulo”, avalia o agrônomo.
Para Frei Sérgio, a CTNBio é “um fantoche, que assina tudo o que a indústria manda assinar”. “Aprova inclusive processos baseados em textos em língua estrangeira, sem se preocupar em traduzir, num total desrespeito não só pela ciência como até mesmo com nosso patrimônio cultural, que é o nosso idioma”.
No entanto, avalia que as ilegalidades e inconstitucionalidades da Lei Biossegurança e as irregularidades e superpoderes da comissão são tentáculos do modelo agrícola hegemônico nacional. Um modelo, aliás, que enfrenta crescente resistência. “Para nossa sorte, os transgênicos de grande expressão são o milho e a soja. Não temos ainda arroz, verduras, frutas, o que nos permite manter, e ampliar, espaços protegidos, livres de transgênicos e venenos. Há assentamentos que vêm conseguindo bons resultados com sementes crioulas de milho. E um outro dado interessante: aumenta a percepção, inclusive entre os agricultores, de que transgênico não é bom”.
Se muitos produtores rurais caminham para se juntar aos consumidores, que em sua ampla maioria são contrários aos transgênicos, o STF não demonstra estar atento a esta questão de interesse público. Desde que foi distribuída ao ministro, em 2005, a ADI 3526 ficou parada por 13 anos, até quem em 2018 a Associação das Empresas de Biotecnologia na Agricultura e Agroindústria (Agrobio) – entidade que representa empresas com interesse direto na farra dos transgênicos –, ingressou como amicus curiae. O tema não consta da agenda do STF para os últimos meses deste ano e ainda não há definição de pautas para o ano que vem. É bem provável que ficará para o nome que Bolsonaro indicar para substituir Celso de Mello, que deixará o STF em novembro ao completar 75 anos.