As cotas raciais do Rio de Janeiro na mira do retrocesso
O Projeto extingue as cotas para negros, mas mantém para filhos de policiais civis e militares
Publicado: 09 Maio, 2019 - 15h41 | Última modificação: 09 Maio, 2019 - 15h46
Escrito por: Laura Astrolabio, Carta Capital
No dia 08 de maio de 2019, foi publicado o projeto de lei 470/2019, assinado pelo deputado do Estado do Rio de Janeiro o Sr. Rodrigo Amorim, mais conhecido como aquele que em pleno processo eleitoral no ano passado esteve num palanque quebrando uma placa que fazia referencia a homenagem feita a vereadora Marielle Franco.
O mencionado projeto de lei propõe a extinção do sistema de cotas para o ingresso nas universidades estaduais do Estado do Rio de Janeiro, requerendo, no entanto, que seja mantidas as cotas para alunos da rede pública de ensino, pessoas com deficiência, filhos de policiais civis e militares, bombeiros militares, inspetores de segurança, agentes do DEGASE e administração penitenciária ou incapacitados em razão de suas atribuições.
Bem, considerando as ressalvas da proposta já fica evidente as contradições entre o que diz pretender e o que realmente pretende, porque, vejamos, se não é possível atestar a necessidade de um candidato negro pela cor da sua pele num país racista, qual o critério para atestar a necessidade do filho do policial civil, por exemplo?
Tal proposta apresenta, portanto, justificativa que além de contraditória desconsidera o direito constitucional à igualdade em todas as suas dimensões e evolução de suas concepções, além de ignorar o histórico escravocrata brasileiro.
Além do mais, se apega a teses que foram amplamente debatidas pela Suprema Corte no âmbito do controle judicial e que foram vencidas por unanimidade.
No entanto, o mencionado projeto de lei retrata exatamente aquilo que há anos vem sendo demonstrado por renomados pesquisadores que é o fato do sujeito que se sente universal olhar para o mundo ao redor a partir de uma perspectiva simplista, medíocre, pois desconsidera processos históricos que moldaram a sociedade desigual atual.
Não é possível desconsiderar que a sociedade em que vivemos hoje é racista. Aliás, se o racismo fosse apenas uma ficção não seria criminalizado. Se consta em lei, inclusive como crime inafiançável, é porque existe, não é um mito. Até porque, o direito serve, entre outras coisas, para administrar os conflitos identificados numa sociedade e a discriminação racial é um desses conflitos e é grave.
O projeto de lei segue em sua justificativa levantando o princípio do mérito, e como proposto, sendo exigido tão somente aos negros e negras , sujeitos historicamente subalternizados, mas dispensado aos filhos de policiais civis, por exemplo.
Para além do apontamento da mencionada contradição, vamos aqui aprofundar apenas um pouco a questão da meritocracia. Como suscitar o princípio do Mérito sem considerar que pessoas negras além de em regra não terem a garantia da igualdade de oportunidade, possuem muito menos a garantia da igualdade de resultado, já que são negativamente discriminadas pela cor, pelo fenótipo, pela textura dos cabelos?
Dessa forma, é um grande equívoco tratar a cota racial como mecanismo de discriminação para justificar que deva ser extinta, inclusive abordando o tema discriminação de forma tão simplista, desconsiderando a modalidade da discriminação positiva, que existe exatamente para combater a discriminação negativa, que mesmo criminalizada não conseguiu ainda fazer com que indivíduos parem de discriminar pessoas negras nesse país. Nesse sentido o professor Adilson Moreira esclarece que
(…) podemos dizer que ações afirmativas não são políticas discriminatórias contra brancos porque as instituições estatais não pretendem promover a marginalização dessas pessoas, elas também não estão agindo a partir de estereótipos culturais negativos que os representam como sujeitos inferiores.
Portanto, quem coloca brancos contra negros são aqueles que pretendem induzir as pessoas a erro de interpretação a respeito do espírito das cotas raciais, não as cotas raciais.
O que afronta a meritocracia é manter pessoas em situação de desigualdade sendo colocadas para competir como se estivessem em situação de igualdade. E aqui estamos falando de igualdade material, concreta, não aquela igualdade abstrata a que se apegam os defensores da tese de que “somos todos iguais”.
Inclusive, a narrativa de que somos todos iguais precisa ser combatida. Somos todos diferentes e devemos ser tratados de forma desigual na medida de nossas desigualdades. Então, se negros são discriminados e estão em situação de desvantagem social, devem ser, sim, criadas políticas públicas que garantam que pessoas negras tenham acesso a espaços que a elas foram historicamente negados, como é o caso das universidades.
Não é sequer mais aceitável acreditar no mito da democracia racial nesse país.
As cotas raciais precisam, sim, ser mantidas como cotas r-a-c-i-a-i-s.
Precisamos dar nomes para os problemas para que possamos solucioná-los. Como bem disse a brilhante filósofa Djamila Ribeiro:
Melhorar o índice de desenvolvimento humano dos grupos vulneráveis deveria ser entendido como melhorar o índice de desenvolvimento humano de uma cidade, de um país. E, para tal, é preciso focar nessa realidade, ou como feministas negras afirmam há muito: nomear. Se não são nomeadas sequer serão pensadas melhorias para uma realidade que segue invisível
É preciso, portanto, que existam, sim, as cotas raciais apontando e fazendo lembrar que vivemos num país racista com estrutura racista, que ainda mantém privilégios ancorados nesse racismo que foi suportado por aqueles que foram obrigados a atravessar o Atlântico e por aquelas pessoas negras que hoje aqui vivem.
Um projeto que alega visar extinguir divisão social não pode ser um projeto que pretende extinguir direitos conquistados a tão pouco tempo por grupos historicamente subalternizados, mantidos a margem.
Afirmar que num país racista como o Brasil a cor da pele não prejudica o acesso de pessoas negras a certos espaços? Acreditar que estamos na era da democracia racial em pleno momento de denúncias internacionais a respeito do racismo no Brasil? Não, deputado. Não mesmo.
E sobre a questão das fraudes, por que não lançar mão de mecanismos de combate em vez de atacar política pública tão necessária para o combate das desigualdades sociais e raciais?
Portanto, esse projeto de lei é uma reverência a onda de retrocessos que infelizmente assola o Brasil, mas que acreditamos será duramente combatido e derrubado. Que será enterrado como deve ser tudo aquilo que pretende nos fazer andar para trás.