Escrito por: Impressa FNU
Parlamentares ignoraram pontos da MP que desrespeitam a Constituição Federal, ferindo a autonomia dos estados
O relatório da Comissão Mista do Congresso Nacional sobre a Medida Provisória (MP) nº 868/18, que altera o marco legal do saneamento básico no país, manteve várias inconstitucionalidades no texto, que deve ser votado na comissão nesta semana. O próximo passo é a tramitação no plenário da Câmara dos Deputados já como Projeto de Lei de Conversão (PLV).
Integrantes do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas) vão entregar aos parlamentares um documento com os principais pontos do relatório que continuam desrespeitando a Constituição Federal, ferindo a autonomia dos estados, municípios e do Distrito Federal, além de mutilarem os princípios da gestão associada de serviços, para atender a interesses privados.
O PLV do Saneamento acaba com os contratos de programa, que definem as regras da prestação de serviços pelas empresas públicas por meio da gestão associada, e obriga os municípios a fazerem licitação para a contratação desses serviços. Também institui uma nova forma de regionalização, não prevista na Constituição Federal, atribuindo aos estados o poder de fixar blocos regionais de prestação de serviço à revelia dos municípios; e ainda restringe o acesso aos recursos da União para os Estados e Municípios que não se adaptem à nova organização do setor.
Caso seja aprovado no plenário da Câmara dos Deputados, o PLV seguirá para o Senado, de onde, se for aprovado sem alteração, seguirá ara sanção presidencial.
Se o Senado modificar o texto, o PLV retornará à Câmara Federal. O prazo final para que o Congresso conclua a votação, após o qual a MP perde validade, é 3 de junho.
“Várias propostas do parecer do Senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) são totalmente inconstitucionais e não visam atender ao interesse público e sim ao setor privado”, afirma o engenheiro Abelardo de Oliveira Filho, um dos autores do documento que está sendo elaborado pelo Ondas, eleito pelos empregados para o Conselho de Administração da Embasa (Empresa Baiana de Águas e Saneamento), da qual foi presidente, e ex-Secretário Nacional de Saneamento Ambiental do Ministério as Cidades.
Para ele, há dois objetivos fundamentais no projeto: driblar os entraves constitucionais para a venda das companhias estaduais; e promover, de forma inconstitucional, a privatização definitiva do setor, colocando em risco as empresas públicas estaduais que são responsáveis por 75% da prestação dos serviços no país.
O relatório do PLV foi apresentado à Comissão Mista no dia 25 de abril, dois dias depois de os participantes da 1ª Oficina de Planejamento das Ações do Ondas, realizada em Brasília, terem entregues a Jeressaiti uma minuta das avaliações da MP, uma espécie de prévia do documento a ser encaminhado aos deputados e senadores.
De acordo com o engenheiro civil e presidente da Federação Interestadual de Sindicatos de Engenheiros (Fisenge), Clovis Nascimento, a oficina organizou as ações e estratégias para os próximos dois anos do observatório e criou uma Rede Nacional de Multiplicadores.
Entre as inconstitucionalidades do novo texto, Abelardo Oliveira destaca a intenção do PLV – “falaciosa”, nas suas palavras – de estabelecer “isonomia” entre empresas privadas e públicas. Isso se daria mediante o fim dos chamados “contratos de programa”, autorizados por Consórcios Públicos ou Convênios de Cooperação, por meio da Gestão Associada de Serviços Públicos, que, por ser uma relação entre entes federados, permite aos municípios contratarem diretamente as empresas públicas por dispensa de licitação, conforme previsto na Lei 8.66, de 1993.
Por meio destes contratos de programa, uma empresa estadual atende a vários municípios, para assegurar benefícios como o subsídio cruzado, levando em conta diferentes realidades sociais.
Ou seja, o contrato de programa propicia que regiões mais ricas ajudem a viabilizar o investimento da companhia pública em pontos com menos recursos, sem diferenciação tarifária. O PLV acaba com esse instrumento e determina que as novas contratações de prestação de serviço sejam feitas por nova licitação.
A proposta, explica o engenheiro da Embasa, parte de um pressuposto falso: “não é possível haver isonomia entre desiguais. As empresas estatais ou de economia mista obedecem a princípios da administração pública, que preveem licitações, concursos e outras exigências da Lei das Estatais. Cuidados que não se aplicam a empresas privadas.”
Além disso, o próprio contrato de programa está assegurado na Constituição (artigo 241), criado pela Lei dos Consórcios (nº11.107/2005, art. 13) para regular as obrigações dos entes federados no âmbito da gestão associada de serviços públicos.
“Uma lei ordinária não pode suprimir um princípio consagrado na Constituição Federal para todos os serviços públicos, inclusive os de saneamento básico, como o da gestão associada de serviços públicos”, explica Oliveira.
“Tampouco impedir que os entes federados optem pela gestão associada, porque a Constituição garante a escolha entre três modalidades de prestação de serviço: direta (centralizada ou não); indireta (por concessão precedida de licitação); e em gestão associada, que dispensa licitação por se tratar de obrigações entre entes federados. Acabar com uma das modalidades e impedir Estados e municípios de escolherem é portanto flagrantemente inconstitucional.”
Se proíbe novos contratos de programas, o PLV aceita a continuidade daqueles que já estão em vigor, até a data de seu vencimento. Mas, na contramão da legislação, mesmo nos casos em que a empresa pública de saneamento seja privatizada.
“Como pode o contrato de programa, que é uma relação entre entes federados que permitem a prestação dos serviços por gestão associada e por dispensa de licitação, continuar a valer com uma prestadora privada?”, questiona Oliveira.
Segundo ele, trata-se de uma burla à exigência de licitação no caso de empresa privada que queira prestar serviços públicos de saneamento básico. A empresa que comprasse uma companhia pública de saneamento poderia “herdar” todas as áreas de atendimento, ainda que a sua governança e suas prioridades (baseadas na obtenção de resultado econômico) mudem totalmente. No PLV, nestes casos de contrato de programa legado, a licitação é substituída por mera consulta aos titulares sobre a conversão dos contratos em concessão. (Art. 15, III).
Para promover “ganhos de escala” (diferente do propósito de dar função social aos serviços), em vez dos contratos de programa, o PLV (art. 14) quer definir blocos de prestação de serviços, a exemplo do que foi feito na privatização das telecomunicações.
Nos leilões das operadoras de telecomunicações, contudo, elas eram, praticamente, todas federais.
A titularidade dos blocos no saneamento básico seria exercida, conforme a proposta do relator, por Estado, consórcio público ou estrutura de governança interfederativa, a ser criada por lei complementar estadual.
“Uma lei ordinária não pode criar atribuições estaduais ou mudar aquelas estabelecidas na Constituição para entes federados”, alerta o engenheiro da Embasa. Cita, nesse sentido, o artigo 25 (§ 3º) da Carta: “Os Estados poderão, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum”.
Do ponto de vista constitucional, ele observa, ainda, que só há duas possibilidades para a titularidade: na primeira, o município e o Distrito Federal são os titulares dos serviços públicos de saneamento básico; em Regiões Metropolitanas, Aglomerações Urbanas e Microrregiões, o exercício da titularidade será feito pelo conjunto dos Municípios e o Estado integrantes da respectiva região, por meio de ente responsável pela governança interfederativa.
Para pressionar e acelerar a adoção das novas regras – a regionalização por meio dos blocos e a “adaptação” dos contratos existentes (o que representaria o fim dos contratos de programa) –, elas se tornariam, de acordo com o PLV, requisitos obrigatórios para financiamento federal.
“Ou cumpre a decisão ou não terá recursos federais”, diz Oliveira.
'Na prática, isso significaria o estabelecimento de um novo Planasa – Plano Nacional de Saneamento, criado em 1969 pelo governo militar e iniciado em 1971, quando, de forma autoritária, os municípios foram obrigados a entregar as suas concessões às empresas estaduais, sob pena de não terem acesso aos recursos.” Em síntese, o Planasa financiava a criação de companhias de saneamento estaduais, por meio do Sistema Financeiro de Saneamento (SFS), gerido pelo Banco Nacional da Habitação (BNH), em contrapartida ao atendimento de obrigações pré-definidas.
Fonte: Site SOS Brasil Soberano