Escrito por: Luciano Velleda, da RBA

Atividade sobre reforma agrária é alvo de denúncia na UFSCar

Acusação – anônima – de ter caráter "político-ideológico" revoltou organizadores da Jornada Universitária em Defesa da Reforma Agrária. Para eles, denúncia põe em risco a liberdade de cátedra

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No último dia 23 de abril, véspera de iniciar a 3ª Jornada Universitária em Defesa da Reforma Agrária (JURA), o professor de economia Joelson Gonçalves de Carvalho, um dos organizadores do evento na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), no interior paulista, foi surpreendido com a informação de que a atividade havia sido denunciada, acusada de ter “caráter eminentemente político-ideológico”. Feita de forma anônima, a "denúncia" causou surpresa ainda maior pelo fato de ter sido acolhida pela ouvidoria da universidade.

Professor do Departamento de Ciências Sociais da UFSCar, Joelson Gonçalves de Carvalho criticou a aceitação da denúncia e disse que o caso coloca em risco a liberdade de cátedra e a autonomia universitária. Como consequência, ele e o professor Rodrigo Constante, co-realizador do III JURA, terão até o próximo dia 21 de maio para se defenderem formalmente.

“Teremos que gastar tempo e energia para responder a uma denúncia que não tem análise de mérito da ouvidoria, que acata um argumento frágil de um denunciante que não se coloca nominalmente, mas apresenta um motivo qualquer que atrapalha o andamento das atividades acadêmicas e, repetindo a prática, coloca em risco a liberdade, a autonomia de cátedra e do pensamento crítico dentro da universidade brasileira”, afirmou o professor de economia, que tem a questão agrária como uma de suas áreas de pesquisa acadêmica e defende que a universidade paute problemas sociais para pensar suas soluções.

A surpresa com a denúncia foi ainda maior pelo fato de ser o quinto ano consecutivo que o evento é realizado na UFSCar, sendo o terceiro ano de modo simultâneo com outras universidades federais do país, com o nome de Jornada Universitária em Defesa da Reforma Agrária, o que, segundo Joelson de Carvalho, ressalta a importância do tema para a reflexão acadêmica.

“Foi com muita surpresa que recebi uma denúncia sigilosa que colocou o evento em risco. Fiquei muito abalado. Sendo o quinto ano consecutivo e com bastante participação dos dissentes e de outros pesquisadores, receber uma denúncia que coloca em xeque um evento que gera capilaridade social, ao mesmo tempo em que ajuda a universidade a cumprir o seu papel, fiquei bastante chateado.”

Do ponto de vista técnico, o professor de economia avalia que a denúncia foi “tão frágil, tão descabida”, que não chegou a colocar em risco o evento, realizado nos dias 24 e 25 de abril. O que o preocupa, entretanto, é a dimensão política da denúncia anônima ser acatada pela ouvidoria da universidade, considerando o contexto do país onde outros casos de ameaça à liberdade de cátedra vêm acontecendo. Por isso, os organizadores do III JURA na UFSCar fizeram questão de dar visibilidade ao problema.

“Fizemos um ato político de desagravo à postura tanto de um denunciante covarde, como de algo que nós acreditamos ser bastante complicado, que foi o prosseguimento da denúncia. Exatamente porque acreditamos tanto na pertinência do evento quanto na importância dele para que a universidade pública paute temas sociais relevantes, e abominamos qualquer forma de perseguição, mesmo sob pena de sermos mais perseguidos ainda”, afirmou. “Vamos gastar algum tempo para nos defendermos individualmente, mas vamos gastar todo tempo para defendermos a universidade pública socialmente referenciada e minimamente crítica num momento de golpe no qual vivemos.”

Joelson de Carvalho destaca que a história das universidades brasileiras sempre esteve ligada à luta pela democracia e contra a ausência de autonomia. Neste sentido, enfatiza que a JURA e a universidade são alvos de diversos ataques. “Passa a ser alvo de denúncia a reforma agrária, porque a reforma agrária não interessa a esse governo. Passa a ser alvo de denúncia qualquer pauta LGBT, porque essa pauta deixou de ser interessante para um governo golpista. E assim muitas outras”, afirma, citando ainda a questão dos direitos quilombolas.

Para o professor de economia, os ataques ao pensamento crítico no âmbito acadêmico estão inseridos no modelo de plutocracia que governa o Brasil, combinado com a fragilização das instituições democráticas de direito. “Na ausência de democracia, com o poder do dinheiro determinando em grande medida a condução da lógica política, não estamos mais vivendo o neoliberalismo, é o 'liberalismo dos infernos'. Estamos numa economia capitalista que elevou a lógica neoliberal ao extremo e abandonou as lógicas e práticas democráticas, corrompendo instituições que são pilares de sustentação da democracia”, afirma Joelson de Carvalho.

Segundo ele, é por isso que os ataques são direcionados àqueles que lutam pela democracia, como as universidades federais e os movimentos sociais. “Todos os temas que já foram importantes pautas de questões sociais não serão bem vistos e, se insistidos neles, todos aqueles que buscam essa reflexão mais crítica estão como alvo preferencial de ataques, tanto por parte de instituições públicas quanto por parte do aparato policial e daqueles que representam os interesses da plutocracia, uma elite que se aperta dentro do Estado e usa o Estado em benefício próprio.”

Resistência
Como resposta à tentativa de inviabilizar o evento e o debate da questão agrária na Universidade Federal de São Carlos, o professor do Departamento de Ciências Sociais já anunciou a realização da Jornada Universitária em Defesa da Reforma Agrária (JURA) de 2019, também no mês de abril. “Virou questão básica manter a JURA como instrumento acadêmico e político numa universidade que não é e nunca foi neutra. Essa conjuntura tem nos animado à união daqueles que acreditam no verdadeiro papel da universidade, para que ela não se cale frente ao terror deste contexto e a perspectiva de piora no curto prazo.”

Em 2018, o efeito prático foi o oposto daquele pretendido pelo denunciante anônimo. Houve maior participação de entidades na organização do evento, como grupos de economia solidária, educação no campo e pesquisa rural, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). A denúncia ainda fez com que os organizadores adaptassem a programação e, como resultado, o público presente na abertura foi o dobro do registrado em 2017.

Com discussões agrárias, uma feira ecosolidária agroecológica e exposição de fotos do movimento estudantil, a 3ª JURA na UFSCar terminou com o debate intitulado Pós-golpe: O que esperar, criminalização ou resistência?.

“Saímos uníssonos com a ideia da resistência, seja ela na academia, nos movimentos sociais ou em qualquer outro espaço, porque os ataques são difusos, a única certeza que temos é de que são cada vez mais persecutórios”, afirmou o professor Joelson de Carvalho.