Escrito por: Fernanda Brescia com colaboração de Rurian Valentino (Especial) - Saúde Popular
Dois anos e meio após o maior crime ambiental brasileiro, moradores não tiveram acesso sequer a exames toxicológicos
“Eu pensei que era uma coisinha mínima. Deu um ‘brotinho’ pequenininho e este brotinho eu tirei a casca dele com a unha. Tirei a casca dele e isto aí foi coçando e foi alastrando e ficou até sair isto tudo que está aqui [feridas e caroços]: os dois pés e as mãos. Isso aí já tem mais ou menos uns dois meses”. Este é o relato de Agenor Silva, de 62 anos, morador de Barra Longa, uma das 40 localidades atingidas pela tragédia de Mariana/MG, maior desastre ambiental da história brasileira, ocorrida em 5 de novembro de 2015, quando houve o rompimento da barragem de Fundão, das empresas Samarco, Vale e BHP Biliton.
Agenor não é o único morador no município que ficou com sequelas da onda de lama. Passados mais de dois anos, os responsáveis pelo desastre não garantiram sequer exames toxicológicos e atendimento adequado.
Após a tragédia, onze moradores de Barra Longa tiveram a contaminação por metais pesados confirmada por análises da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto e do Instituto Saúde e Sustentabilidade, realizadas em São Paulo, em março de 2017 e março de 2018. A alta presença de níquel no organismo é capaz de causar doenças de pele, queda de cabelo e outras ainda desconhecidas.
O morador José Márcio Marques mostra ferimentos nas mãos, reclama de dores nas costas e da visão. “Eu enxergava mais. Agora estou enxergando pouco, principalmente à noite, principalmente para dirigir. Quando vem um carro eu tenho que parar o meu pra ele passar e para eu ir embora. Tem tipo umas dormências também, um trem esquisito, parecendo que está torcendo o nervo da gente”, afirma.
A esposa de José Márcio, Simone Aparecida, denuncia que desde o rompimento da barragem, sua filha Sofya, uma criança de três anos que teve intoxicação por níquel e arsênio confirmada, ficou um mês e meio com diarreia, começou a apresentar manchas no corpo. Análises do sangue da menina, coletado em março de 2017 e março de 2018, mostraram um aumento na concentração de arsênio: de 2,4 ug/l para 10,4 ug/l.
Simone relata que apenas a filha passou por exames, desde o rompimento da barragem, apesar da saúde de toda a família ter sido afetada, assim como amigos e vizinhos que reclamam de sintomas similares aos de Sofya.
O ano escolar de Taynara Barreto foi prejudicado. A adolescente de 16 anos, outra moradora com contaminação diagnosticada por níquel e arsênio, perece de fortes dores de cabeça. Segundo a mãe, Luciene Barreto, Taynara tem apresentado problemas respiratórios e manchas na pele.
Odete Cassiano, de 60 anos, e o pai de 92 anos, também tiveram confirmadas as presenças de metais pesados em seus exames, mas seguem morando à beira do rio que atravessa Barra Longa, onde parte dos rejeitos escoaram. Segundo ela, além da saúde, o desastre comprometeu as finanças da família. Antes do rompimento da barragem, Odete gastava cerca de R$ 200 em medicamentos de uso contínuo para a família, agora paga aproximadamente R$ 700 e sem nenhum apoio das empresas ou do poder público.
As relações afetivas da família também foram prejudicadas. “Lá [no quintal] eu tinha fruta, verdura, que ia até pros meus netos e minhas netas que moram em Acaiaca. Hoje nem lá em casa eles vão mais. Não têm mais onde brincar, não tem mais as frutinhas do pomar da vovó. Lá tinha lichia, goiaba, tinha dois tipos de limão, tinha mamão…”, lamenta.
A médica Evangelina Vormittag relata que os moradores diagnosticados pela contaminação foram orientados, pelos médicos de São Paulo, a se mudarem. “Na verdade, o que nós precisávamos fazer com elas, a curto prazo e imediatamente, seria retirá-las da exposição. Isto não é possível porque nós não sabemos ainda onde ocorre esta exposição, mas elas receberam a orientação de procurar mudar da cidade de Barra Longa, pra não continuarem expostas”, completa.
MPF e MAB cobram responsabilidade
Representantes do Ministério Público Federal (MPF) e do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), entre diversas entidades que estiveram na assembleia do último dia 16 de abril, cobraram a realização de estudos mais aprofundados e independentes sobre o meio ambiente, além da ampliação na busca de mais pessoas contaminadas.
“O essencial é garantir o princípio da precaução: prevenir novos danos à saúde. E para isto é preciso também aprofundar os estudos no meio ambiente e com relação à saúde da população atingida. As empresas têm o dever e a obrigação de impedir que estes danos continuem sendo causados às populações atingidas”, afirmou Edmundo Dias, procurador da República.
Letícia Oliveira, do MAB, defende que as ações sejam custeadas pelas empresas responsáveis, mas coordenadas pelo Estado. “As empresas responsáveis devem arcar com os custos de todo este trabalho, de exames, estudos e tratamentos, mas não devem coordenar nem acompanhar nada disso. A gente entende que tem que ser um grupo independente ou o próprio Estado, de forma independente, a realizar estas ações”.
Outro lado
A Fundação Renova, organização criada pelas empresas Samarco, Vale e BHP Billiton, levanta dúvidas em relação à causa dos problemas de saúde apontados pelos estudos do Instituto Saúde e Sustentabilidade e informa que aprofundará por meio de novos estudos. “Esse estudo tem como objetivo identificar fatores de contato da população com compostos químicos, decorrentes da barragem de Fundão e estabelecer as implicações para a saúde humana”.
Em nota, a Renova alega estar “trabalhando em conjunto com as secretarias de Saúde Municipal e Estadual, além do Ministério da Saúde, para apoiar o atendimento em Barra Longa” e “reparar os danos causados pelo rompimento da barragem”.
Ainda segundo o documento, “um fluxo já está estabelecido, através da rede pública de saúde, para seguir com os encaminhamentos, dando prioridade às pessoas já identificadas com alteração dos resultados de exames laboratoriais e seus familiares”. E que um médico especialista em toxicologia “está disponível para apoiar na interpretação dos dados laboratoriais”.
No dia 23 de abril, a Fundação realizou, em conjunto com a Secretaria de Saúde Municipal de Barra Longa, nova coleta de amostras de água para identificar possíveis fontes de contaminação e esclarecer se a água utilizada pela população está própria para consumo. A previsão de divulgação é 15 de maio.
Sintomas comuns
De acordo com registros da Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (Aedas), assessoria técnica que acompanha os atingidos, dezenas de pessoas têm observado sintomas comuns. “O que eles percebiam que tinha começado ou tinha piorado depois do rompimento da barragem eram problemas respiratórios, problemas de pele, problemas psicológicos ou psiquiátricos, problemas gástricos, musculares, muita diarreia, que ninguém conseguia entender. Dores na perna, muita gente falando as mesmas coisas”, relata Aline Pacheco, psicóloga da Aedas.
Evangelina Vormittag, médica do Instituto Saúde e Sustentabilidade, defende a necessidade de aprofundar a investigação. “Os exames das onze pessoas mostram que estas pessoas que vivem em Barra Longa têm o contato com estes elementos tóxicos e isto traz evidências. A gente não pode dizer que a população está contaminada baseado só nestes onze, mas isto traz um indício, uma preocupação, de que outras pessoas também podem ter a contaminação. O mais importante, além do resultado de intoxicação, é saber onde está este metal no meio ambiente, de que forma essas pessoas estão expostas a estes elementos tóxicos”, defende.