Escrito por: Redação RBA
Por ‘decisão editorial’, dados sobre as providências tomadas em relação às quase 87 mil denúncias recebidas em 2019 são excluídos do relatório do Disque 100
Das 86.837 denúncias de violência contra crianças e adolescentes, registradas em 2019 no Disque 100, ainda não se sabe qual encaminhamento foi dado ou quais providências foram tomadas. A falta de transparência é resultado da ação, pelo governo de Jair Bolsonaro, que excluiu essas informações do último relatório do Disque Direitos Humanos. As informações são do jornal Folha de S. Paulo.
De acordo com reportagem publicada neste domingo (23), todas as outras denúncias de violações recebidas pelo canal também estão ausentes na publicação. Divulgado pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, em maio, com dados do ano passado, o relatório aponta que os casos de violência infantil representaram 55% do total das queixas registradas. Uma alta de 13,9% nas denúncias recebidas em 2018.
Por “opção editorial adotada pela Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos”, segundo o ministério, chefiado por Damares Alves, o fluxo de informações não consta no relatório. Em junho, dados da violência policial já haviam sido excluídos do texto.
A omissão dos dados vai na contramão da apresentação que era feita nos governos anteriores. É com base nesses dados que se sabe, por exemplo, que o índice de respostas às denúncias registradas ainda é baixo. O jornal mostra que, em 2018, apenas 13% das denúncias encaminhadas foram apuradas pelos órgãos responsáveis, como de segurança pública, conselhos tutelares e corregedorias.
Precarização do Disque 100
Os conselhos tutelares, por exemplo, que são os mais acionados para casos de violência contra crianças e adolescentes, tiveram o pior índice de resposta. Apenas 10% das denúncias resultaram em alguma providência adotada. Diante de casos como o da menina de 10 anos, do Espírito Santo, abusada desde os 6 anos e engravidada pelo tio, “a questão dos retornos e encaminhamentos se torna mais crucial”. Sob o risco de que os órgãos de proteção, apuração e recebimento de denúncias sejam desqualificados pela população.
“Para que denunciar se ‘não serve pra nada’? Providências não são tomadas, ou se são, não se sabe se foram. Devemos presumir que as vítimas continuaram em risco”, advertiu o advogado Ariel de Castro Alves à reportagem da Folha de S. Paulo.
Na prática, de acordo com a assistente social Karina Figueiredo, o Disque 100 passa por um processo de “precarização” e “desmonte”. Ao jornal, a assistente social da ONG Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescente (Cecria), que participou da estruturação do canal de denúncias, em 2003, no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, acrescenta que a fala da gestão Bolsonaro, desde o início do mandato, era de “desconsiderar tudo que havia sido feito anteriormente”.
“Começaram a criar um monte de questões para desqualificar o Disque 100”, descreve. “Disseram que iam rever, e até agora não vimos nada de concreto. Não que o Disque fosse perfeito. Mas a gente precisava era de um diálogo para tentar um aprimoramento e não desqualificar o que foi feito antes”, explica Karina Figueiredo, que é também secretária-executiva do Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual de Crianças e Adolescentes.
Damares ameaça
O processo agravou uma precarização do canal que vinha em curso desde o governo golpista de Michel Temer. Quando, em 2016, o Disque 100 foi transferido de Brasília para Salvador. No novo endereço, a central de atendimento passou a ser responsabilidade de um prestador de serviço, não mais do governo federal.
A tentativa de desqualificar o órgão também foi usada como argumento pela ministra Damares. Pelo Twitter nesta segunda-feira (24), ela criticou a reportagem dizendo que a pasta vem “trabalhando para aperfeiçoar um sistema e uma rede de proteção que sempre foram falhas”. Damares ameaçou processar o jornal, afirmando que o governo “não se silenciará. Nossa resposta virá pela Justiça”.
Ao veículo, no entanto, Karina Figueiredo lembrou que em decreto, no ano passado, a comissão intersetorial de enfrentamento à violência sexual de crianças e adolescentes foi extinta pela pasta. O que rompeu com a interlocução de diferentes setores da sociedade pelo combate ao abuso na infância – a bandeira que Damares sempre levanta como a principal de sua gestão.
Para a deputada federal Marília Arraes (PT-PE), a falta de informações e o desmonte revelam “como funciona o governo Bolsonaro: muito discurso e nenhuma ação. Nunca foi sobre ‘proteger nossas crianças'”, contesta a deputada, que é pré-candidata à prefeitura do Recife, pelo Twitter.
A deputada Sâmia Bomfim (Psol-SP) também repercutiu nas redes sociais as revelações, como uma evidência de que “o governo Bolsonaro não tem o menor compromisso em combater o abuso sexual de crianças e adolescentes”. O deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP), que é também pré-candidato a prefeito de São Paulo, pediu “que os ‘cidadãos de bem’ se lembrem disso quando encherem a boca para falar de família. Governo hipócrita e criminoso, alivia para violentador e persegue criança estuprada. Canalhas!”, escreveu em sua conta.
O ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad (PT), que disputou as eleições presidenciais em 2018, resumiu a”coesão” do governo Bolsonaro na prática sistemática de retirada e da precarização dos direitos da população. “Enquanto Bolsonaro atenta contra liberdade de imprensa, Damares desmonta ação de combate ao abuso de crianças”.
Redação: Clara Assunção