Escrito por: Rosely Rocha

Brasileiros consomem mais alimentos com gordura e processados para fugir da inflação

Alimentos ultraprocessados aumentam riscos de doenças renais, câncer, diabetes, hipertensão e obesidade. Médica alerta para riscos por falta de política pública na saúde

Nalu Vaccarin / Mgiora

Para driblar a fome, que se agravou com a crise econômica prolongada, e fugir da inflação dos alimentos, milhares de famílias brasileiras estão consumindo alimentos ultraprocessados, como salsichas, linguiças e macarrão instantâneo, que são mais baratos, mas de baixo valor nutricional, e o que é pior, provocam doenças crônicas nos rins, além de diabetes, hipertensão, obesidade, desnutrição e câncer.

A quantidade de produtos processados e ultraprocessados consumidos pode ser medida, em parte, pelo lucro da indústria de biscoitos, massas alimentícias e pães e bolos industrializados de R$ 50,44 bilhões no ano passado – um aumento de quase R$ 6 bilhões em relação a 2020 e quase R$ 10 bilhões a mais em comparação ao ano de 2019. Ou seja, em dois anos, o lucro dessas empresas aumentou mais de 20%.

Ressalve-se que nem toda produção dessas empresas é de alimentos processados e ultraprocessados, mas no ano passado, a Associação Brasileira das Indústrias de Biscoitos, Massas Alimentícias e Pães e Bolos Industrializados (Abimapi), já estimava que o faturamento deveria subir entre 5% e 10%, impulsionado pela venda do macarrão instantâneo, um produto considerado pelos nutricionistas prejudicial à saúde pela alta concentração de sódio e outros conservantes.

A nutricionista Sheila Araújo Costa, da prefeitura da capital paulista e dirigente do Sindicato dos Trabalhadores em Saúde de São Paulo (Sindsep), diz que a obesidade aumentou muito durante a pandemia, devido ao sedentarismo, a crise econômica e à alimentação de baixa qualidade, com pouco consumo de frutas e verduras.

“A carcaça de frango é gordura, imagine o tanto de gordura consumida que aumenta o risco de câncer. A nutrição recomenda preparar alimentos sem gordura para não penetrar na carne. A salsicha também traz esse risco, mas as pessoas compram por ser mais barata do que a carne”, diz a nutricionista.

A distribuição de ossos de bois chocou parte da população brasileira, e ainda teve gente que quis lucrar ainda mais sobre a fome. Um supermercado chegou a colocar à venda, por R$ 2,99, a pele de frango. A repercussão negativa fez o estabelecimento retirar o produto da prateleira.

Reprodução / Twitter

A tragédia aumenta ainda mais quando se percebe que a área da saúde vem sendo atacada pelo atual governo federal que, para manter o teto de gastos públicos e tentar baixar os preços dos combustíveis, diminuiu o valor de impostos, cujos valores são repassados para a saúde pública. Somente com a perda de arrecadação do Imposto sobre Circulação de Mercadoria (ICMS) a estimativa é que a saúde e a educação percam R$ 2 bilhões. Efeito colateral da lei pode tirar R$ 21 bilhões só do ensino público de estados e municípios, segundo estimativas da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca), publicadas no jornal o Globo.

A médica Juliana Salles, que é diretora da Executiva Nacional da CUT, afirma que a falta de alimentação adequada com excesso de consumo de comida processada com alto teor de sal sobrecarrega o sistema de saúde pública. Essas doenças poderiam ser evitadas se o governo federal tivesse comprometimento com a saúde pública, não reduzindo o orçamento que impacta nos municípios.

“Mais de 50% da população passam por insegurança alimentar e a responsabilidade da prevenção de doenças, que inclui a nutrição, é da Atenção Primária, das prefeituras, cujas verbas estão sendo cortadas pelo governo federal, como no caso do ICMS”, critica a médica.

Leia mais: PEC do governo que zera ICMS para conter preços dos combustíveis é solução tabajara 

A médica critica ainda as tentativas de terceirização da saúde pública no Brasil. Juliana se baseia num vasto estudo da Universidade de Oxford sobre o NHS – o National Health System do Reino Unido. Conduzida ao longo de oito anos (de 2013 a 2020), a pesquisa apurou que ao menos 557 pessoas morreram de doenças “tratáveis”, depois que parte de seus tratamentos da saúde pública foi terceirizada.

O sistema público paga caro para submeter a população a assistência de pior qualidade e ao risco ampliado de morte. A mesma pesquisa demonstrou que cada aumento de 1% nos gastos com terceirização produz, no ano seguinte, uma alta de 0,29 mortes a cada 100 mil pessoas. O estudo foi publicado, no final de junho deste ano, pela revista Lancet

O mau uso do dinheiro público deixa a população sem saúde, com fome, na miséria e com consequências ruins para toda a sociedade- Juliana Salles

Alimentação nas escolas de SP tem consumo de processados

A nutricionista da prefeitura de São Paulo, Sheila Araújo Costa, afirma que o problema hoje da alimentação nas escolas públicas é a falta de fiscalização do que é oferecido, principalmente nas escolas conveniadas com o município.

Segundo ela, o programa de alimentação escolar é ótimo, mas sem fiscalização não há como saber se as crianças estão sendo alimentadas decentemente. Há denúncias, inclusive, de arroz com caruncho e de alimentos enlatados, oferecidos nas escolas estaduais de São Paulo.

Segundo o Ministério da Saúde, mais de 6,4 milhões de crianças brasileiras estão acima do peso ideal, sendo que, desse total, 3,1 milhões já são consideradas obesas. Isso significa que, atualmente, 1 a cada 10 crianças entre 5 e 9 anos são diagnosticadas com obesidade infantil. O excesso de peso está relacionado, sobretudo, ao maior consumo de produtos industrializados – ricos em açúcar e gordura.

Outra crítica da nutricionista é em relação à alimentação oferecida à população de rua pela prefeitura paulistana.

“Eu fui a um local de acolhimento e vi que as empresas que fornecem alimentos para a área assistencial oferecem salsicha todo dia. Não tem nutricionista no programa e fica à critério da assistente social, que não tem condições de fiscalizar. É uma tragédia, sai de lá chorando”, conta Sheila.

Classificação dos alimentos

A classificação NOVA de alimentos tem quatro categorias: alimentos in natura ou minimamente processados (adquiridos da mesma forma ou de forma próxima ao seu estado natural, como frutas frescas ou arroz embalado), ingredientes culinários (extraídos de ingredientes in natura e utilizados para cozinhar, como óleos, sal e açúcar), alimentos processados (um misto dos dois grupos anteriores, como uma geleia de morango feita à base da fruta, com adição de açúcar) e, por fim, produtos alimentícios ultraprocessados.

Os produtos ultraprocessados — que podem ser comidas e bebidas — não são propriamente alimentos, mas, sim, formulações de substâncias obtidas por meio do fracionamento de alimentos in natura. Essas substâncias incluem açúcar, óleos e gorduras de uso doméstico, mas também isolados ou concentrados protéicos, óleos interesterificados, gordura hidrogenada, amidos modificados e várias substâncias de uso exclusivamente industrial. Além disso, são frequentemente adicionados de corantes, aromatizantes, emulsificantes, espessantes e outros aditivos que dão às formulações propriedades sensoriais semelhantes às encontradas em alimentos não ultraprocessados.

Esses ingredientes servem para disfarçar características indesejadas do produto final. Apesar das alegações comumente vistas nas embalagens dos ultraprocessados, alimentos in natura são uma pequena porcentagem de sua composição ou estão simplesmente ausentes, como no caso de produtos “sabor morango” ou “sabor uva”.

A lista de ultraprocessados é longa, incluindo refrigerantes, bebidas lácteas, néctar de frutas, misturas em pó para preparo de bebidas com sabor de frutas, salgadinhos de pacote, doces e chocolates, barras de “cereal”, sorvetes, pães, margarinas, pratos de massa e pizzas pré-preparadas, nuggets de frango e peixe, salsichas e muitos outros produtos.

Fonte: Cátedra Josué de Castro /Nupens - Universidade de São Paulo (USP). O documento é assinado por Carlos Monteiro, Patrícia Jaime e Tereza Campello, ex-ministra Desenvolvimento Social e Combate à Fome, entre 2011 e 2016. Confira a íntegra do documento aqui.