Brumadinho: três anos de impunidade e sonhos soterrados
Propostas de alteração na legislação ambiental e falta de responsabilização pelo crime podem fazer com que um dos maiores desastres socioambientais do Brasil se torne apenas mais um
Publicado: 26 Janeiro, 2022 - 09h05 | Última modificação: 26 Janeiro, 2022 - 09h15
Escrito por: Conectas Direitos Humanos
No dia 25 de janeiro de 2019, o técnico em sondagem e perfuração Lieuzo Luiz dos Santos e mais quatro colegas estavam no penúltimo degrau da barragem 1 (B1) da Mina Córrego do Feijão, controlada pela Vale, no município mineiro de Brumadinho. A cerca de 70 metros de altura do chão, eles tinham acabado de perfurar o solo para instalar um equipamento capaz de medir a pressão interna do reservatório. Apesar do sucesso da tarefa, os funcionários não tiveram muito tempo para comemorar, porque a barragem que armazenava o equivalente a 400 mil caminhões-pipa de rejeitos da mina se desfez em um tsunami de lama. Ao lado do rompimento da barragem de Fundão da mineradora Samarco, em 2015, o evento marcou a história recente do Brasil, e já completa três anos.
Naquele dia, a estagiária Marina Costa tinha trazido bolo e pão caseiro para comer com Lieuzo e os colegas, na tenda azul erguida no alto da barragem. Em dois meses, ela oficializaria um noivado, e completaria 25 anos. Enquanto lanchavam, o auxiliar Olímpio Gomes Pinto reparou no comportamento inquieto dos bois que costumavam pastar na região. Ninguém imaginou o que poderia ser. Depois de um tempo, o encarregado de obras Noel Borges de Oliveira sentiu fome e decidiu apressar os colegas para descer e almoçar no refeitório. O auxiliar Miraceibel Rosa já recolhia os materiais, quando Lieuzo percebeu a tenda azul balançar. Sem vento nenhum. Em poucos segundos, todos foram engolidos pela lama. Menos Lieuzo, que, apesar de ter sido arrastado por quase um quilômetro, sobreviveu ao desastre.
Sem responsabilização de culpados
Para a jornalista Daniela Arbex, trata-se de uma tragédia anunciada, como conta no livro “Arrastados: Os bastidores do rompimento da barragem de Brumadinho, o maior desastre humanitário do Brasil” (Ed. Intrínseca). Na obra em que investiga a história de Lieuzo e de outras vítimas, ela afirma que a Vale já sabia que não haveria chance de fuga nem do local que foi definido pela empresa como “zona de autossalvamento”.
“O lamaceiro seguia seu curso e, após passar sobre o terminal ferroviário, não encontrou obstáculo que o impedisse de transformar em escombros a área administrativa da Vale, abaixo da B1. Exatamente como a empresa previra em seu Mapa de Inundação, ao analisar nove meses antes a possibilidade de um rompimento da barragem”, escreve Arbex na obra. “No caso de uma hipotética ruptura do maciço, o refeitório, o posto médico, o laboratório, os escritórios, as oficinas e o Centro de Materiais Descartados, todos a cerca de 1,5 km da B1, seriam soterrados. De fato, foram.”
Com triste precisão, os cálculos da Vale estimavam ainda que, em caso de vazamento, o mar de lama poderia matar mais de 200 pessoas. Foram 270 — seis ainda continuam sendo procuradas pelos bombeiros de forma ininterrupta.
Até hoje ninguém foi preso ou julgado pelo caso. Em novembro de 2021, a Vale e a TUV SUD (que atestou a estabilidade da barragem) foram indiciadas pela Polícia Federal, além de 19 outras pessoas. Enquanto o Ministério Público aguarda a chegada do processo na Justiça Federal para fazer a denúncia, o Ministério Público do Trabalho e a Vale assinaram um acordo que indeniza em R$ 700 mil cada cônjuge, filho e pai de funcionário da companhia, de forma individual, além de R$ 150 mil a irmãos, e pensão vitalícia para dependentes.
Segundo a mineradora, até o momento, mais de 11 mil e 400 pessoas foram indenizadas através de acordos individuais e indenizações trabalhistas, com um total de R$ 2,7 bilhões comprometidos, sendo que R$ 2,5 bilhões já foram pagos.
O acordo também prevê indenização para terceirizados. Esse é o caso do técnico Lieuzo, que estava no alto da barragem com os colegas. Mas, em depoimento ao Fantástico, ele afirmou que nunca recebeu sequer uma ligação da empresa.
Acordo sem transparência
Em fevereiro de 2021, a Vale também fechou um acordo de reparação com o governo do estado de Minas Gerais, a um custo de R$ 37,7 bilhões. O acordo prevê programas de transferência de renda, reformas de escolas e UBS (Unidades Básicas de Saúde) dos municípios da bacia do rio Paraopeba, projetos de saneamento básico e até a construção de um rodoanel na região metropolitana de Belo Horizonte e melhorias no metrô.
O problema é que o acordo não contou com a participação das vítimas e afetados pelo desastre. “O Estado e as instituições de Justiça dizem ser representantes legítimos dos atingidos e atingidas da bacia do Paraopeba nas negociações em razão das atribuições legais, mas como confiar num Estado completamente minério-dependente, que também tem responsabilidade na fiscalização da segurança dessas barragens e que, de certo modo, se beneficia diretamente do acordo firmado?”, questionou Marina Oliveira, atingida e membro da Arquidiocese de Belo Horizonte, em entrevista à Conectas, ainda em 2021.
Na mesma entrevista para a Conectas, Letícia Aleixo, assessora técnica pela Cáritas Minas Gerais, aponta que faltou transparência. “Ao ser anunciado como um ótimo acordo, a empresa passa uma imagem de ‘responsabilidade’ e ‘quitação de obrigações devidas’, enquanto a situação não se altera concretamente para as famílias atingidas e tantas outras barragens seguem em risco de rompimento no mesmo estado, expulsando ainda mais famílias de suas casas”, lembrou. No Brasil, no total, 122 barragens se encontram em estado crítico, segundo 25 órgãos fiscalizadores.
“Com esse discurso, a reputação da Vale cresce no mercado, assim como o valor das ações negociadas. A empresa também se beneficia do fato de que ficará encarregada da execução de alguns programas e obras, bem como com a extinção de algumas perícias judiciais que seriam realizadas com caráter independente, mantendo assim o controle sobre o processo de reparação.”
Só no terceiro trimestre de 2021, a Vale registrou lucro líquido de US$ 3.886 bilhões (mais de R$ 21 bilhões), correspondendo a um crescimento de 33,6%, na comparação com o mesmo período do ano anterior. Os dados foram divulgados pela própria mineradora.
Projeto de licenciamento ambiental abre brechas para novos crimes
Outro fator que preocupa entidades que atuam na área dos direitos socioambientais é a tramitação no Senado Federal do projeto de lei que flexibiliza o licenciamento ambiental. De acordo com o projeto, alguns tipos de barragens podem até ser dispensados do licenciamento.
Ainda segundo o texto, com exceção de obras classificadas como significativo potencial de impacto ambiental, passa a ser exigido apenas o Licenciamento por Adesão ou Compromisso, conhecido como LAC, emitido automaticamente sem verificação de órgãos ambientais do cumprimento da legislação. A licença autodeclaratória feita pelo empreendedor torna-se, portanto, a regra e o licenciamento, a exceção. Na avaliação de Júlia Neiva, coordenadora do programa de Defesa dos Direitos Socioambientais da Conectas, “o texto-base abre brechas para que barragens como as do Rio Doce e de Brumadinho, tenham menos fiscalização e controle, dando possibilidades para o acontecimento de outros crimes ambientais de grandes proporções”.
Problemas na proposta de novo Código de Mineração
Além disso, há ainda o novo Código de Mineração, que está em discussão na Câmara dos Deputados. Em uma nota, organizações da sociedade civil afirmam que o projeto “centraliza atribuições excessivas no governo federal e restringe a fiscalização das atividades minerárias à Agência Nacional de Mineração”.
“A proposta não só não conta com a consistência técnica ou jurídica necessária, como representa mais um perigoso risco ao meio ambiente e a toda sociedade brasileira, na medida em que busca, na sua essência, facilitar o acesso aos recursos minerais, flexibilizando de forma equivocada e perigosa normas e procedimentos para o controle de impactos e de danos ambientais e sociais”, afirma o texto assinado pela Conectas, Greenpeace Brasil, Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos), ISPN (Instituto Sociedade, População e Natureza), Instituto Socioambiental, NOSSAS, SOS Mata Atlântica e WWF.
“O interesse em alterar regulamentações do tipo deixa cada vez mais evidente que tragédias socioambientais causadas por grandes empresas não são necessariamente resultado do acaso. E, além das vidas que se perdem na lama, quem sobrevive aos desastres continua sofrendo com sistemáticas violações de direitos humanos e racismo ambiental, além, claro, dos prejuízos, muitas vezes irreparáveis, a rios, matas e florestas ”, afirma Neiva.