Cineasta Otto Guerra entra na Academia de Hollywood dois anos após vaias em Gramado

O gaúcho é um dos cinco brasileiros citados no livro Animation Now, a bíblia da animação mundial

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Em 2018, o diretor gaúcho Otto Guerra arrancou vaias - e aplausos - da plateia do Festival de Cinema de Gramado ao dizer que havia vivido "a época do outro golpe (de 1964), foi como se baixasse uma nuvem negra sobre o Brasil. Espero que após essa eleição o ódio acabe, que façamos as pazes. Lula livre, pelo amor de Deus".  Dois anos depois, e 42 enfrentando a pedreira que é fazer cinema no Brasil, passando por cima de falências e despejos,  Guerra ingressou na Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood que organiza anualmente a grande festa do Oscar.

Ele é um dos 8.190 convidados, de 68 nacionalidades, a integrar a agremiação. Além de Otto, os brasileiros Mariana Oliva e Tiago Pavan, produtores do documentário Democracia em Vertigem, a montadora Cristina Amaral, de Um Filme de Verão e Person, e os documentaristas Julia Bacha, de Naila and the Uprising e Budrus, e Vincent Carelli, de Martírio e Corumbiara também viraram novidades na academia mais famosa do cinema que, ao anunciar seus novos integrantes, premiou a diversidade.

Confira a entrevista exclusiva do diretor de “Wood & Stock” ao Brasil de Fato.

Brasil de Fato RS - Você sabe por que entrou para a Academia? 

Otto Guerra - Imagino que em função dos 40 anos em que atuo na área de animação e cinema, enfim, alguém dentro da academia deve me conhecer... A animação brasileira está em uma fase muito boa, muito profícua, então começamos a aparecer em vários festivais pelo mundo e esse crescimento da animação resulta nesse tipo de acontecimento, visibilidade, e aí surgiu esse convite.  

BdFRS - Qual é a sensação, em meio a uma pandemia, ser indicado para a Academia de Hollywood, após ser vaiado e ameaçado em Gramado? 

Otto - De fato a cidade de Gramado está se mostrando bem conservadora, e até reacionária em relação à cultura. É um tiro no pé, a cidade vive de turismo, então o Festival de Gramado deveria ser respeitado. Infelizmente, não está acontecendo. Frequentadores dos restaurantes que ficam ao lado do tapete vermelho, jogaram comida nos convidados, foi uma vergonha. 

Sim, o reconhecimento da academia conta muito na carreira. Aliás, imagino que essa indicação possa ter a ver com uma homenagem que eu recebi em 2016 no Festival de Gramado, chamada Troféu Eduardo Abelin. No ano seguinte foi homenageado o Carlos Saldanha, animador brasileiro que trabalha em Los Angeles e dirigiu A Era do Gelo, Rio e outros filmes blockbuster. Talvez o Carlos tenha levantado o meu nome lá na academia. Então Gramado ao mesmo tempo que me agride me fortalece. Eu gosto muito do Festival de Gramado. 

BdFRS - Que significado tem essa indicação em um ano que o audiovisual, por conta da pandemia, parou, com produções suspensas, canceladas?

Otto - É bem importante, uma notícia boa em meio a essa pandemia, onde as coisas se complicaram bastante para todo mundo. A animação, no caso da gente, consegue-se tocar a história de casa, o animador trabalha no computador ou em mesa de luz, então não precisa estar na rua, como é o caso das produções de set, onde tu precisas sair para gravar. Até as novelas da Globo pararam. Mas nós continuamos tocando os nossos projetos.  

BdFRS - Em termos globais, nunca o cinema de animação faturou e se expandiu tanto. No Brasil, porém, salvo exceções, a produção é modesta. Por quê?

Otto - Na real, a produção de desenho animado no Brasil chegou num ponto que nem nos meus sonhos mais otimistas imaginei. Quando eu comecei lá em 1978, tinha dois, três longas brasileiros feitos. E agora estamos, só nesse momento, com 20 longas em produção e o Brasil produziu dezenas de curtas, séries e longas desde a retomada do cinema brasileiro. O Brasil virou uma potência mundial na animação, ganhando festivais importantes pelo mundo a fora. Estamos assombrando o universo de animação do planeta. 

Mas depois do golpe de Estado em Dilma e sobretudo com esse governo federal, tudo parou, até o Ministério da Cultura foi extinto. O Brasil chegou a ser um dos países mais evoluídos em questão de leis e incentivo à cultura. Voltamos à estaca zero. Creio que o volume e a constância que tínhamos até aqui tenha a ver com o fato de mais um animador brasileiro compor o juri do Oscar.

BdFRS - Quando se observa a Netflix e outras plataformas de streaming, a gente vê uma presença modestíssima do cinema brasileiro e uma esmagadora do cinema norte-americano. Não está na hora de fixar uma cota mínima de conteúdo nacional nessas plataformas?

Otto - Essas negociações das cotas que vinham bem, a partir da entrada do governo Temer e agora do Bolsonaro só nos desfavorecem. Estão sendo colocados representantes das grandes empresas internacionais no Conselho Superior de Cinema. Vemos também renascer a censura de conteúdo, junto ao congelamento das verbas. É o desmonte da nossa atividade! Pior do que a era Collor, porque agora tínhamos uma produção grandona e em 1990 não tínhamos a força de agora. E mesmo na era Collor, por exemplo, a Cinemateca brasileira que é onde estão todos os arquivos do cinema brasileiro foi preservada. Agora, até a Cinemateca brasileira está sob intervenção. Foi nomeado um general, onde deveria ser um técnico qualificado, não é brincadeira. Tiraram a grana da cinemateca, vão cortar luz, talvez vá se perder tudo... O cinema, o acervo precisam estar sob uma temperatura, se não tem temperatura controlada, os filmes da década de 20, 30, 40 se deterioram, rapidamente. Então estamos correndo risco de perder toda a nossa história. 

BdFRS - Qual sua impressão a respeito do cinema brasileiro nos últimos anos?

Otto - Estou muito contente com o cinema lá de Pernambuco, há muitos anos estão produzindo um filme atrás do outro, filmes incríveis como esse do Bacurau, do Kléber (Mendonça Filho). O cinema brasileiro conquistou um espaço grande em Cannes, indicações ao Oscar, como o documentário da Petra, o Democracia em Vertigem que ganhou recentemente o prêmio Platino de melhor documentário, e quase ganhou o Oscar.  E também o filme do Alê Abreu, O Menino e o Mundo, longa de animação que chegou entre os 5 finalistas em 2016. Estávamos muito bem, não sei como vai seguir isso, não só em função da pandemia, mas esse pandemônio que virou o governo e as leis. Estamos sob ataque cerrado, não só o cinema, mas a cultura em geral do Brasil.

BdFRS - Como criador, o que lhe parece o personagem Bolsonaro e sua turma? Como seria o nome, se você fizesse uma animação sobre a famiglia Bolsonaro?

Otto - Nunca pensei em fazer um filme de máfia na verdade, nem tenho entendimento desse assunto. Eheheheheheh. Como esse cara chegou lá não dá para entender, Fake News? Prisão ilegal de Lula? É assustador, uma pena, toda a campanha que foi feita contra a Dilma, contra o Lula, toda essa sacanagem que o Brasil fez com nossa Constituição. A Petra conta essa história no Democracia em Vertigem, mostrando o que aconteceu e porque estamos na situação que estamos, agora. Eles não merecem um filme, nem sobre bandidagem. 

BdFRS - Gostaria que nos falasse também como você está tocando a sua produtora e seus trabalhos durante a pandemia, e também sobre a produção do teu primeiro filme infantil onde uma menina salva um príncipe (invertendo o tema tradicional), e sobre o teu road movie, no sertão de um filho em busca do pai.

Otto - Esses são projetos mais antigos, o filme do menino é de 2011 e o da menina, do príncipe é de 2016, eram projetos aprovados ainda na fase em que era possível tocar, não tinha se chegado nesse drama de agora. Como animação demora bastante para se fazer, cinco anos cada filme, estamos com bastante tempo pela frente para tocar os nossos trabalhos à distância. Está todo mundo em casa. As reuniões são on-line. Reclamam que estão trabalhando mais horas que presencial, ehehehehe.  

BdFRS - Como analisa a cadeia produtiva e a situação do setor audiovisual sob o governo Bolsonaro, um governo castrador no que se refere ao cinema e suas possibilidades.

Otto - A resposta já está na pergunta. Eles estão cortando tudo. O Reagan (Ronald), presidente estadunidense, tinha uma frase muito boa, “se a gente der cultura e educação ao povo nós não vamos chegar ao poder nunca mais”. Faz sentido, os governos de direita e extrema direita não têm interesse na educação e nem na cultura; a pobreza, a ignorância é fonte de uma grande riqueza de algumas pessoas, infelizmente.  

BdFRS - Qual é a possibilidade real de ganhar um Oscar com a produção de animações para adultos?

Otto - É menor que um filme infantil, mas é bem possível. É uma coisa inédita um filme adulto de animação ter ganho o Oscar, eu não sei responder se algum dia algum ganhou, eu não tenho notícias disso. Sempre são... Essa ligação de crianças com animação tem mais de 100 anos, então é muito arraigada, a não ser que se faça um grande filme com grande orçamento, com uma genialidade absurda para conseguir emplacar um filme adulto de animação com Oscar, eu acho.  

BdFRS - Que mundo imaginas pós-pandemia?

Otto - Eu li uma matéria que, na Holanda, tem uma proposta do governo de decrescimento que se pare com o excesso de consumo, que se corte, por exemplo, a propaganda, um negócio que gasta muito dinheiro para concorrência. Muitas ideias vão surgir. A natureza não perdoa, estamos brincando com fogo, acabando com o ecossistema todo. Estamos nos suicidando. Acho que essa pandemia é só uma pequena amostra do que pode vir acontecer se continuarmos nesse caminho de não ter limite de consumo, do tal progresso, que custa a Amazônia, que tem um preço absurdamente grande, que vai acabar matando a nossa mãe, a única que a gente tem, que é o planeta Terra, chamado de Gaia. Então eu espero que esse susto traga mudanças, por outro lado, pode ser que piore, as pessoas com medo elegem Bolsonaro, as pessoas com medo elegem Trump, com medo elas fazem coisas horrorosas, Hitler... 

Estamos em cima do fio da navalha, a humanidade precisa tomar consciência que faz parte de um sistema, se seguirmos no ritmo alucinante de consumo seremos extintos e a Terra seguirá seu caminho sem nós e se regenerá.

Abraço para vocês!

Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Rodrigo Durão Coelho e Ayrton Centeno