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CEDOC-CUT publica artigo em revista ligada a central sindical espanhola
A revista eletrônica Estudios y Cultura da Fundação 1º de Maio, entidade vinculada a central sindical espanhola Comisiones Obreras (CC.OO.), trouxe em sua edição de Janeiro o artigo "La Comisión Nacional de la Verdad en Brasil y el protagonismo de los trabajadores por memoria, verdad, justicia y reparación" escrito por Antonio José Marques, coordenador do CEDOC CUT.
No artigo, Antonio faz uma análise de conjuntura do período da Ditadura no Brasil e situa a criação, atuação e fortalecimento da CUT no tema de Direitos Humanos. Acesse a revista e o artigo - reproduzido abaixo - neste link.
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A Comissão Nacional da Verdade no Brasil e o protagonismo dos trabalhadores por memória, verdade, justiça e reparação
Nos primeiros anos da década de 1960, a sociedade brasileira viveu momentos de grandes tensões políticas: a renúncia do presidente Jânio Quadros; a campanha pela legalidade, exigindo a posse do vice-presidente João Goulart; a instalação pelo Congresso Nacional do parlamentarismo, imposto por setores conservadores da sociedade; e o retorno ao presidencialismo, após a maioria do povo aprovar em plebiscito esta forma de governo. No plano internacional havia a polarização entre os Estados Unidos de um lado e a União Soviética do outro, período que fez parte da chamada “guerra fria”. A política internacional independente do governo brasileiro e, no âmbito interno, a política nacional desenvolvimentista, levadas a cabo pelo presidente João Goulart, apoiado e pressionado pelos trabalhadores e movimentos sociais, desagradavam forças políticas conservadoras, empresários, grandes proprietários de terras, a maior parte da imprensa e militares conspiradores, que acusavam o presidente de se aproximar dos comunistas. Ao mesmo tempo em que esses setores conspiravam contra o presidente João Goulart, apoiados e financiados pelo governo dos Estados Unidos, como comprovam vários documentos, os trabalhadores da cidade e do campo se organizavam no Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), na Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), nas Ligas Camponesas e exigiam o aprofundamento das reformas econômicas, políticas e sociais.
O mês de março de 1964, no Brasil, foi de intensa agitação social. Entre outros acontecimentos, ocorreu na cidade do Rio de Janeiro o comício em apoio às Reformas de Base propostas pelo presidente João Goulart. Essas Reformas de Base consistiam basicamente em reformas política, educacional, fiscal e agrária. O comício foi impulsionado pelos sindicatos e reuniu mais de 150 mil pessoas, um número surpreendente para a época. As mobilizações sindicais, sociais e populares provocaram a intensificação das articulações das forças golpistas. No dia 31 de março de 1964, militares golpistas e civis conservadores assaltaram o poder e depuseram o presidente João Goulart. Este, para evitar uma guerra civil e derramamento de sangue, preferiu não resistir e buscou exílio no Uruguai. Os golpistas acusaram João Goulart de querer implantar uma “República Sindicalista” no Brasil e por isto elegeram os sindicatos e os trabalhadores como seus principais inimigos. O CGT, a CONTAG e as Ligas Camponesas foram desarticulados e esmagados, sindicatos foram invadidos, seus dirigentes presos, cassados, torturados e até mesmo assassinados. Ao mesmo tempo teve início a imposição de toda uma legislação contra os trabalhadores: a lei de greve, a lei do fim da estabilidade no emprego, a lei de segurança nacional, a lei de imprensa, entre outras. O plano de desenvolvimento dos militares, apoiados por empresários e latifundiários comprometidos com o capital internacional, arrochava salários, provocava desemprego, a expulsão dos trabalhadores do campo, a concentração fundiária, o crescimento desordenado das cidades. Enfim, aprofundava a miséria entre os trabalhadores, setores mais pobres da população e concentrava a riqueza nas mãos de poucas pessoas.
As perseguições contra os trabalhadores, seus sindicatos e os movimentos sociais; a falta de liberdade de organização e de imprensa; a intensa repressão, com prisões, torturas, assassinatos e desaparecimentos forçados, levaram a resistência e a luta pelo retorno da democracia. Durante os 21 anos de ditadura militar no Brasil, entre 1964 e 1985, os trabalhadores foram as principais vítimas do regime militar, como mostram as atuais investigações. Naquele período milhares de pessoas foram presas, torturadas e algumas centenas assassinadas e desaparecidas forçosamente. Mesmo nessa situação bastante adversa, os trabalhadores se organizaram, lutaram por suas reivindicações, organizaram greves massivas, como nos anos de 1978, 79 e 80, que ocorreram em todo o Brasil. Nesse processo impulsionaram a criação da Central Única dos Trabalhadores (CUT), fundada em 1983, e que se constituiu combatendo a ditadura militar e consolidou-se como uma das expoentes da luta pela democracia e cidadania no País.
Nesses mais de 30 anos de história, a CUT sempre denunciou as atrocidades cometidas pela ditadura militar. Apoiou as entidades de familiares de presos, torturados, mortos e desaparecidos forçados. Denunciou e ainda denuncia que a ditadura militar teve e tem um alto custo para a sociedade brasileira. A ditadura militar deixou uma herança, um legado, que está presente no mundo do trabalho, nas relações trabalhistas, na legislação social, na educação, na segurança pública, na violência no campo, na concentração da mídia, na falta de moradias, nas precariedades em saúde e saneamento básico, na violência urbana, entre outras mazelas.
Entretanto, somente em 1995, com a criação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, vinculada ao Ministério da Justiça, foi que as investigações sobre a brutal repressão durante a ditadura militar e a busca pela verdade e memória histórica passaram a ser feitas pelo Estado brasileiro. Isso se deu após muita mobilização da sociedade, principalmente das entidades de familiares das vitimas e militantes dos direitos humanos. Todavia, foi no segundo mandato do presidente Lula (2007 – 2010), quando se discutiu o Plano Nacional dos Direitos Humanos 3 (PNDH 3), que a temática atingiu um novo patamar. A legislação com o PNDH 3 foi aprovada em 2009 e trazia como um dos eixos orientadores o tema “Direito à Memória e à Verdade”.
Em 2011, as discussões sobre a criação da Comissão Nacional da Verdade ganharam maior visibilidade na sociedade brasileira. No mês de novembro, quando já se sabia que a lei criando a Comissão seria sancionada pela presidenta Dilma Rousseff, as entidades se articularam para indicações de militantes comprometidos com a luta pela verdade, memória, justiça e reparação, num contraponto aos nomes vinculados pela mídia e comprometidos com posições conservadoras. No dia 18 daquele mês, a presidenta Dilma Rousseff sancionou a lei que criou a Comissão Nacional da Verdade (CNV) com a finalidade de investigar as graves violações de direitos humanos praticadas entre 1946 e 1988 “a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”, de acordo com o texto da lei. Por fim, em maio de 2012, após 27 anos do término da ditadura militar, a Comissão Nacional da Verdade foi instalada pelo governo brasileiro com o prazo de dois anos para realizar os seus trabalhos, e que depois foram prorrogados por mais seis meses. A CUT apoiou a instalação da Comissão, mas também defendeu que fosse feita justiça, com a apuração dos crimes cometidos pelos agentes da ditadura e seus apoiadores e o devido julgamento, havendo punição dos culpados e reparação às vitimas e/ou seus familiares. Os trabalhadores e trabalhadoras reconhecem que a memória histórica, a verdade, a justiça e a reparação são fundamentais para a construção de uma sociedade justa e igualitária.
No seu 11º Congresso Nacional, em julho de 2012, a CUT aprovou uma resolução que exigia investigações de todas as violações cometidas durante a ditadura militar. Também requereu o aprofundamento das investigações dos crimes da ditadura contra os trabalhadores, trabalhadoras e os sindicatos. Para isso, a Executiva Nacional criou uma Comissão de Acompanhamento da Comissão Nacional da Verdade. Na primeira reunião da CNV com a sociedade civil, a CUT entregou documentos com nomes de dirigentes sindicais assassinados que precisavam ser investigados e reivindicou a criação de um Grupo de Trabalho (GT) dos Trabalhadores no âmbito da CNV. No começo de 2013, após a mobilização da CUT, agora também apoiada por outras centrais sindicais, a Comissão Nacional da Verdade institucionalizou o Grupo de Trabalho Ditadura e Repressão aos Trabalhadores e ao Movimento Sindical.
Em maio de 2013, a CUT criou a sua Comissão Nacional da Memória, Verdade e Justiça que fortaleceu o GT Trabalhadores da CNV. Esta Comissão, ainda em atividade, assessorada pelo Centro de Documentação e Memória Sindical da CUT, faz pesquisas, coleta depoimentos e também incentiva investigações sobre a repressão sofrida pelos trabalhadores e o movimento sindical. Ela também faz um chamado para que as entidades sindicais perseguidas durante a ditadura militar constituam suas Comissões de Memória e Verdade, recuperem e organizem seus documentos, coletem depoimentos, na medida em que estas são formas de contarem suas histórias de resistências e lutas. As atividades de arquivo e memória devem ser permanentes e não se esgotam com fim dos trabalhos das Comissões da Memória e Verdade.
A Comissão Nacional da Memória, Verdade e Justiça da CUT também pressionou para que a Comissão Nacional da Verdade do governo brasileiro incluísse na Justiça de Transição os trabalhadores do campo assassinados no período da ditadura e que suas famílias fossem devidamente reparadas, na medida em que foram crimes políticos. A lei que criou a CNV estabeleceu que a mesma investigasse somente os crimes cometidos por agentes do Estado. No entanto, a política para o meio rural imposta pela ditadura militar levou a concentração fundiária, a criação de milícias por fazendeiros que perseguiam e matavam trabalhadores e sindicalistas rurais. Muitas vezes, os próprios fazendeiros e seus capangas cometiam os crimes e eram acobertados pelo governo e por órgãos da Justiça. Segundo levantamento feito pelo pesquisador Gilney Viana, quase 1.200 trabalhadores e sindicalistas rurais foram assassinados no campo entre 1964 -1988. Esses trabalhadores ainda não tiveram reconhecidos seus direitos como perseguidos e assassinatos políticos e suas famílias não foram devidamente reparadas. Entre centenas de assassinados, dezenove sindicalistas rurais estiveram diretamente envolvidos no processo de formação da CUT no início dos anos 1980 e três deles ocuparam cargos na Central.
Os trabalhadores e trabalhadoras são a maioria da população e foram os mais perseguidos pela ditadura militar. Por isso, a CUT e sua Comissão Nacional da Memória, Verdade e Justiça ficaram atentas e acompanhando os trabalhos da CNV, a apresentação do relatório final e as recomendações que devem ser seguidas pelo Estado brasileiro visando acabar com a herança deixada pelos militares, para que ditaduras nunca mais aconteçam. Finalmente, depois de dois anos e meio de investigações, pesquisas e coletas de centenas de depoimentos, a Comissão Nacional da Verdade apresentou o seu Relatório Final à sociedade brasileira no dia 10 de dezembro de 2014.
O Relatório Final da CNV analisa as origens do golpe, traz casos emblemáticos de repressão, nomes de centenas de pessoas envolvidas com torturas, assassinatos e desaparecimentos políticos, identificou locais de prisões, torturas e assassinatos em várias partes do Brasil, alguns desses clandestinos, outros em instalações militares, como quartéis do exército, e reconheceu 434 mortos e desaparecidos políticos. Não deixamos de reconhecer que o Relatório Final é um avanço e buscou a memória e à verdade histórica, sendo um instrumento para continuarmos lutando por justiça e reparação para todos que sofreram repressão, foram torturados, mortos e desaparecidos forçosamente. Todavia, é preciso revisar a Lei da Anistia de 1979 sancionada pelo governo militar e que auto-anistiou os assassinos e torturadores. Muitos dos nomes listados como torturadores e assassinos ainda estão vivos, alguns prestaram depoimentos a Comissão Nacional da Verdade, reconheceram seus crimes e saíram livres, como se nada tivessem feito, indo para suas casas. Isso é vergonhoso para a sociedade brasileira. A revisão da Lei da Anistia permitirá que os responsáveis por crimes contra a humanidade sejam punidos. Esses crimes são imprescritíveis, conforme o Direito Internacional.
Outro fato frustrante é as forças militares, Exército, Marinha e Aeronáutica, não reconhecerem seus papéis na repressão, torturas e assassinatos de pessoas, mesmo com a Comissão Nacional da Verdade tendo comprovado o uso de suas instalações e identificado os assassinos e torturadores. Os militares alegam que fizeram investigações e nada encontraram, quando na verdade foram eles mesmos que queimaram arquivos e destruíram provas.
A Comissão Nacional da Verdade também não avançou na localização dos restos mortais dos desaparecidos forçados, sendo necessária a continuidade desses trabalhos. Também não é definitivo o número de 434 mortos e desaparecidos políticos e o mesmo deve aumentar. Não está na relação divulgada pela CNV, por exemplo, três nomes de trabalhadores rurais assassinados por militares em meados da década de 1980 quando realizavam greves. Por outro lado, constam na relação nomes de trabalhadores rurais assassinados por desconhecidos, e não por agentes do Estado, abrindo a possibilidade, portanto, para que centenas de casos de trabalhadores e sindicalistas rurais assassinados durante a ditadura militar sejam reconhecidos como crimes políticos.
É preciso avançar ainda nas investigações sobre a participação dos empresários e das empresas no golpe militar, na sustentação da ditadura e no apoio a infraestrutura de repressão. Algumas empresas cediam veículos, instalações, financiavam organismos para torturas e assassinatos de pessoas, mantinham estruturas internas de segurança chefiadas por militares, demitiam e denunciavam os ativistas sindicais. Esses empresários e as empresas são cúmplices dos militares, devem ser punidos e repararem os trabalhadores com indenizações pelos crimes cometidos.
Por fim, existem ainda outras questões que precisam ser mais investigadas, pois, mesmo não sendo reconhecidas como crimes contra a humanidade, provocaram milhares de mortos. É o caso, por exemplo, dos mortos em acidentes de trabalho. Na década de 1980, o Brasil se tornou o campeão mundial em acidentes de trabalho. Também temos as mortes provocadas por doenças devido ao crescimento desordenado das cidades e a falta de saneamento básico e investimentos em saúde. Temos os casos das crianças que saíram das escolas e foram obrigadas a trabalharem para ajudarem no sustento da família. Os militares alteraram a Constituição da República em 1967 e instituíram o trabalho infantil. Isto foi um crime contra nossa infância.
A Comissão Nacional da Verdade e o seu relatório final é o início de um processo sem volta. Agora é preciso aplicar as recomendações, principalmente no que tange democratizar as polícias e as forças armadas.
Não existe época para a busca da verdade, memória, justiça e reparação.
Antonio José Marques
Historiador e arquivista, é Coordenador do Centro de Documentação e Memória Sindical da CUT Brasil (CEDOC)