Escrito por: Érica Aragão
Sindicatos dos médicos de SP e dos servidores públicos municipais da cidade estão na luta contra a Covid-19 e em defesa dos trabalhadores que estão na linha de frente desta pandemia
“Ou a gente socorre os vivos ou dá papel para quem já morreu”, diz o médico do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência e Emergência (SAMU) em São Paulo, que não quis se identificar para evitar retaliações, sobre a nova função de atestar mortes naturais, indefinidas ou causadas pela Covid-19 ocorridas fora dos hospitais.
Os profissionais do SAMU, que já enfrentam problemas graves como a falta de ambulâncias, de Equipamento de Proteção (EPI) e o excesso de trabalho, em especial neste momento de pandemia do novo coronavírus, o que dificulta e muito a missão de salvar vidas, agora estão fazendo também as tarefas do pessoal do trabalho do Serviço de Verificação de Óbitos (SVO). É isso que determina o Decreto nº 64.880 do governador de São Paulo, João Doria (PSDB), e de seu secretário Estadual da Saúde, José Henrique Germann Ferreira.
“Eles fecharam o SVO como medida para conter os riscos que os médicos legistas têm de contraírem o vírus ao abrir o corpo (necropsia), analisar a causa da morte para dar o atestado de óbito e passou a responsabilidade para as prefeituras, que foram orientadas a passar a função para a gente”, explicou o médico que trabalha no Suporte Avançado de Vida (SAV) do SAMU há 28 anos, acompanhado de um profissional da enfermagem e um motorista.
Segundo ele, este serviço deveria ser feito pelos médicos legistas, de casa em casa, porque os médicos do SAMU não são especializados e ainda têm outras responsabilidades que sufocam o fluxo de trabalho e sobrecarregam os trabalhadores e as trabalhadoras do serviço.
“Nós estamos muitas vezes trabalhando emergência e urgência com duas ambulâncias para toda a cidade, com deslocamentos distantes um do outro, temos que cumprir todo o procedimento de examinar o corpo da vítima, para conferir se não tem sinais de violência e declarar o óbito, coletar o exame do Covid-19 e ainda fazer a necropsia verbal, que é um questionário a ser feito com a família com 120 perguntas, que se transformarão em algoritmos para conseguir determinar a causa da morte”, contou.
Quando o médico fala em duas ambulâncias para toda a cidade de São Paulo, é importante lembrar duas coisas: 1) a capital paulista tem mais de 12,18 milhões de habitantes e uma área de 1.521 km2; e, 2) o sucateamento do SAMU pela gestão do prefeito da capital paulista, Bruno Covas (PSDB), não é novidade e foi denunciado pelos trabalhadores que chegaram até a fazer greve por melhores condições de trabalho para atender a população.
De acordo com o médico do SAMU que falou com a reportagem do PortalCUT, nesta emergência sanitária, ao invés de salvar vidas, eles estão passando entre 3 a 4 horas fazendo trabalho burocrático. Uma média de 90% dos atestados de óbitos, disse ele, saem como morte a esclarecer. “Além de atrapalhar as estatísticas de morte, que são importantes, a gente deixa a família sem saber o real motivo da morte, quando estas vítimas não tinham outros problemas de saúde”, afirmou.
Fora o cuidado para não ser contaminado com doença que, segundo ele, pode ser transmitida pelo corpo sem vida horas depois.
“Nós estamos usando duas amortalhas (sacos pretos), uma com o zíper para cima e outra para baixo, porque o corpo pode soltar líquidos, nos contaminar e transmitir a doença para os próximos servidores e funcionários do município que terão o contato com o morto na funerária”.
Situação piorou
Uma enfermeira, que também não quis se identificar e que também trabalha no SAV, nos contou que já tinha déficit de pessoal e de estrutura antes da pandemia e que com a situação atual só piorou.
Segundo ela, querem fazer com que o SAMU faça um papel que não é dele, atrasando os atendimentos de alta complexidade, ao invés de aumentar o SVO e o número de ambulâncias na rua para conseguir salvar mais vidas.
“A gente só quer continuar nosso trabalho de urgência e emergência, principalmente com esta pandemia, e conseguir atender o máximo de pessoas que podermos. Não dá para tirar ninguém e nenhum serviço desta linha de frente, descobrindo um santo e cobrindo outro, mas é este caminho que o governo do Estado escolheu”, ressaltou a profissional do SAMU, que complementou: “Lembrando que esta medida é estadual, portanto outros municípios devem estar passando pelo mesmo problema”.
Falta de EPI
Já há inúmeros casos de contaminação do novo coronavírus dos profissionais da saúde como um todo. Os socorristas do SAMU já vêm alertando sobre o recebimento de máscaras finas e sem qualidade para o trabalho, de casos de infecção destes profissionais e até de mortes de trabalhador por não estar adequadamente protegido.
Os trabalhadores e as trabalhadoras do SAMU disseram que é importante dizer que muitas equipes ainda estão trabalhando com escassez de Equipamentos de Proteção Individual (EPI), como máscaras, óculos, aventais de proteção, luvas e gorros.
“Apesar da má qualidade dos materiais que são fornecidos, algumas vezes ainda temos de reutilizar esses recursos descartáveis”, contou a enfermeira.
Luta dos sindicatos
Tanto o Sindicato dos Servidores Municipais de SP (Sindsep) quanto o Sindicato dos Médicos do Estado de SP (Simesp) estão acompanhando o problema das categorias e estão na luta em defesa da saúde, da vida e do trabalho destes profissionais do SAMU e de todos os outros que estão a frente no combate ao novo coronavírus.
A secretária dos Trabalhadores da Saúde do Sindsep, Lourdes Estevão Araújo, disse que nesta quarta-feira (22) esteve reunida com a mesa técnica da prefeitura, que reúne entidades sindicais, conselhos e governo, e o secretário Municipal de Saúde, Edson Aparecido, esteve presente.
Segundo ela, o secretário atendeu imediatamente a reivindicação que surgiu com reclamações e denúncias da categoria, e ainda disse que também é contra a medida de colocar os médicos do SAMU para fazer atestado médico devido a pequena quantidade de SAV.
“A gente comunicou imediatamente a categoria nos grupos de WhatsApp que o secretário irá tratar deste problema com o governo do Estado e que a gente espera que até a próxima reunião da mesa técnica, na próxima terça-feira (28) o problema tenha sido resolvido, nem que seja com a suspensão deste decreto”, disse a dirigente, que é trabalhadora no hospital municipal no Campo Limpo.
O diretor do Simesp, Erivalder Guimarães, que também esteve presente na reunião da mesa técnica, disse que o secretário afirmou também que irá colocar veículos leves com médicos para fazer este serviço e que não vão mais utilizar os veículos do SAMU. Segundo ele, a entidade tem atuado juridicamente também.
“Paralelamente a estas conversas com a prefeitura, o departamento jurídico do Simesp está analisando a viabilidade de apresentar denúncia ao Ministério Público e mover ação judicial”, contou.
Morte e despedida
O médico que conversou com a reportagem do PortalCUT também contou que com a pandemia as pessoas não estão podendo fazer velórios e que a despedida está acontecendo no local da morte, mesmo em casos indefinidos para garantir a não proliferação do vírus, e que isso tem sido muito complicado.
“A gente está vivendo uma época muito difícil e as famílias, às vezes, só têm uns minutos para fazer oração e se despedir antes de lacrar tudo e o corpo seguir para a funerária”, afirmou.
Testagem do Covid-19
Segundo o médico do SAMU, os testes para saber se a morte foi ou não devido ao coronavírus estão sendo feitos corretamente e isso também tem atrasado os serviços de urgência e emergência.
“Muitas vezes temos que levar o teste para a unidade de saúde o mais rápido possível porque não temos como refrigerar adequadamente o exame e podemos perder. A gente só atende outra chamada quando terminamos todos os processos que precisam ser feitos”, contou.
Suportes de atendimentos do SUS
O SAMU é dividido em três tipos de atendimentos. Nas ambulâncias de Suporte Avançado de Vida (SAV) há um médico, enfermeiro e um motoristas. O SAV é para casos de alta complexidade, mas que agora passou a emitir atestado de óbitos para toda cidade de São Paulo.
O Suporte Intermediário de Vida (SIV) tem um enfermeiro, um auxiliar e o condutor. E no Suporte Básico de Vida (SBV) tem um auxiliar e o condutor.