Escrito por: Tatiana Melim
Para Hermes Leão, da APP Sindicato, propor ensino a distância é usar a educação como barganha no mercado financeiro. Já Janine Ribeiro foi taxativo: é ensino sem escola, sem professor e sem merenda
O presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), anunciou uma série de propostas para a educação brasileira que podem acabar com a escola, com os professores e com a merenda e, ainda, restringir o debate nas salas de aula, afetando a qualidade da formação dos jovens brasileiros.
Entre as medidas e diretrizes para a educação já anunciadas pelo presidente de extrema direita está à expansão do ensino a distância para crianças a partir de seis anos, defendida em diversas ocasiões por pelo menos dois colaboradores do futuro governo, ambos donos de escolas de ensino a distância: Paulo Guedes, já anunciado como ministro da Fazenda, e Stavros Xanthopoylos, que atuou na campanha eleitoral e chegou a ser cogitado para ser ministro da Educação.
Outras medidas são a transferência da gestão do ensino superior para o Ministério de Ciência e Tecnologia e a censura aos professores por meio da aprovação do Projeto de Lei 7180/14, conhecido como “Escola Sem Partido” ou “Lei da Mordaça”, com o pretexto de coibir uma suposta “doutrinação” ideológica nas escolas.
Ensino sem escola, sem professor e sem merenda
Durante a campanha eleitoral, Bolsonaro defendeu o ensino a distância dizendo que a medida ajudaria a "baratear o ensino no Brasil", além de "combater o marxismo".
Em artigo publicado em sua rede social, o professor Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação, criticou a proposta, dizendo que ensino a distância é o mesmo que ensino sem escola, sem professor e sem merenda.
“Sabe o que é educação a distância? Não há mais: uniforme, calçado, merenda. Não há mais escola, como lugar aonde as crianças e adolescentes vão. Não haverá mais professora, professor, em contato direto com seu filho. Na educação a distância, as crianças ficarão diante de uma TV, assistindo as aulas”, disse Janine em texto publicado no Facebook.
Para o presidente do Sindicato de Trabalhadores em Educação Pública do Paraná (APP-Sindicato), Hermes Leão, os argumentos falaciosos de Bolsonaro escondem o real projeto que está por trás da perseguição aos professores que é alavancar empresas que atuam no sistema financeiro e acabar com as escolas como nós conhecemos hoje.
Para o dirigente, o debate em torno da ‘Lei da Mordaça’ é uma forma de jogar uma cortina de fumaça para colocar em prática o projeto de ensino a distância, usando a educação como barganha no mercado financeiro.
“Os empresários querem aumentar seus lucros e, para isso, vão aproveitar a entrega da educação, da saúde e outros serviços essenciais ao mercado privado, como sinaliza as propostas de Bolsonaro”.
Assessores de Bolsonaro são donos de escolas de ensino a distância
O alerta do presidente da APP-Sindicato não é por acaso. O economista Paulo Guedes, indicado para o Ministério da Fazenda, é um entusiasta do ensino à distância tanto que investiu no setor por meio de suas empresas. Como investidor Guedes deu início à expansão de seus negócios na área educacional. Atualmente, sua empresa Bozano Investimentos, tem pelo menos oito empresas de educação.
A maioria explora a educação à distância online ou redes de universidades, como a NRE Educacional, com foco no curso superior de medicina no Tocantins, Piauí e Minas Gerais; a Q Mágico, plataforma de ensino digital; a Wide, que produz e gerencia conteúdos digitais; e a Passei Direto, rede social para universitários.
Outro conselheiro de Bolsonaro que também possui empresa na área de educação a distância é Stavros Xanthopoylos, um dos sócios da Kitutor Desenvolvimento de Tecnologia, rede social educacional direcionada para alunos e professores.
Ele, que já foi vice-presidente e hoje é diretor da Associação Brasileira de Educação a Distância (Abed), entidade que reúne empresas com atuação na área, foi um dos que aconselhou Bolsonaro, durante a campanha eleitoral, a propor o ensino fora das salas de aula.
Propostas não resolvem o desafio da educação
Mesmo que parte da equipe de governo de Bolsonaro possa estar de alguma forma ligada ao setor da educação a distância, esse não é o único problema das propostas apresentadas pelo presidente de extrema direita.
Para o ex-ministro da Educação e professor Renato Janine Ribeiro, as medidas apresentadas até agora, sem uma diretriz clara, “são tão desconexas e desprovidas de base que não temos como saber ao certo o que é a proposta de educação para o país”.
“É uma política sem consistência, apenas com críticas. Dizem que não vai ter Paulo Freire, não vai ter escola gratuita para todos, não vai ter direitos humanos, mas não apresentam nada concreto do que vão fazer”, avalia Janine.
Se fosse um projeto de direita, diz o ex-ministro, que quisesse propor a diminuição de conteúdos relacionados à questão de gênero, por exemplo, para focar em uma formação pró-mercado, pelo menos uma proposta concreta estaria no horizonte. “Mas nem isso eles apresentaram. Por enquanto, o que me parece é que pegaram todas as pautas extremistas e reacionárias e não sabem ao certo o que farão com elas”.
“Não sei como conseguirão articular todas elas, pois muitas são estapafúrdias, fora da realidade, como a intenção de fazer com que o professor seja obrigado a ensinar o criacionismo junto com a Teoria da Evolução de Darwin”.
Ensino Superior no Ministério da Ciência e Tecnologia
O ex-ministro da Educação, Renato Janine Ribeiro, vê também com preocupação o anúncio de Bolsonaro de que irá transferir a gestão do ensino superior, que é uma responsabilidade constitucional do Executivo Federal, para o Ministério da Ciência e Tecnologia.
“É transferir a responsabilidade por mais de mil instituições de ensino superior, públicas e privadas, e mais de oito milhões de estudantes. Isso pode inviabilizar a tarefa principal do Ministério da Ciência e Tecnologia devido à sobrecarga de trabalho”, alerta.
“O ensino superior pode dominar a agenda do ministério e prejudicar o avanço da pesquisa científica brasileira. O MCT já é responsável pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e dialoga bem com outras áreas ligadas ao Ministério da Educação, como a Capes, por exemplo”.
Para o presidente da APP-Sindicato, Hermes Leão, essa é mais uma proposta desastrosa de Bolsonaro que vai contra os princípios de expansão da educação e da pesquisa no país.
Segundo ele, é mais uma medida para enfraquecer as políticas públicas voltadas à promoção do acesso às universidades e abrir caminho para a entrada do mercado em áreas estratégicas.
“Essa medida deixa o Brasil subalterno aos interesses estrangeiros na área de pesquisa e tecnologia que garantem a nossa soberania nacional. É praticamente abrir mão da pesquisa científica nacional sem qualquer garantia de expansão do ensino superior”.