Com fundação, Lava Jato caiu na armadilha da onipotência
A tentativa de criação de uma fundação de direito privado com dinheiro – público – da Petrobras desnuda definitivamente o deslumbramento pelo poder, e de seus integrantes
Publicado: 11 Março, 2019 - 10h36 | Última modificação: 11 Março, 2019 - 10h48
Escrito por: Luis Nassif
A tentativa de criação de uma fundação de direito privado é um capítulo decisivo na história da Lava Jato. Trata-se de processo similar, em muitos aspectos, ao fenômeno do Plano Real. Cria-se um tema nacional único – na época, o combate à inflação, agora, o combate à corrupção –, num movimento que exige super-heróis. A construção da imagem exige o herói sem mácula, despido dos sentimentos comuns aos mortais, como ambição financeira, gana pelo poder. À medida em que vão escalando novos patamares de prestígio ou financeiro, os freios naturais – escrúpulos, princípios – vão se flexibilizando.
Lá atrás, tentei especular o que aconteceria com os lavajateiros quando a curva de prestígio da empreitada começasse a cair. A resposta é essa tentativa canhestra de criação da fundação de direito privado para administrar R$ 2,5 bilhões de multas da Petrobras.
O Real arrebentou com as contas públicas, deu início ao processo de desindustrialização, promoveu a maior transferência de renda da história, na forma de uma enorme dívida interna sem contrapartida de ativos.
Por seu lado, a Lava Jato promoveu a quebra da engenharia nacional e gerou milhões de desempregados, com apoio de uma mídia incapaz de blindar a economia contra a guerra ideológica movida pela operação.
A destruição das empresas brasileiras era essencial para a vitória ideológica? Evidente que não. Mas o jogo ideológico exigia a construção da imagem dos novos atores políticos. E não se poderia comprometer a narrativa ficcional apontando os abusos cometidos. Esse superpoder foi entregue a um grupo de agentes públicos provincianos, deslumbrados e financeiramente ambiciosos.
No início entraram de cabeça no mercado de palestras. O cachê cobrado por uma palestra superava em muito os proventos de um mês de trabalho. No caso da Lava Jato, o temor infundido em toda classe empresarial trazia um atrativo a mais para a contratação: compra de proteção, já que os superpoderes do grupo eram exercidos sem nenhum discernimento.
Deram um bypass nos regulamentos internos que proíbem outras fontes de renda, com exceção de aulas. Palestras milionárias recorrentes passaram a ser tratadas, então, como aulas convencionais. E quem iria questionar os grandes campeões brancos?
Com a fundação, rasga-se a fantasia
Há inúmeras maneiras de reverter os recursos das multas para o benefício público. A Constituição prevê uma série de fundos, geridos por conselhos de direitos de minorias, para receber esses recursos. Só como exemplo, o Fundo dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes, o Fundo Nacional dos Direitos Difusos Lesados, fundos de assistência social, de saúde, de educação. Todos com estrutura pronta de deliberação e de prestação de contas.
A Lava Jato tenta criar uma fundação para estimular, entre outras bandeiras, a disseminação do compliance (conjunto de ações que garantem o cumprimento de todas as leis, regras e regulamentos aplicáveis visando a reputação de uma empresa).
Um pouco antes, dois dos principais personagens da Lava Jato anunciam sua aposentadoria: o juiz Sérgio Moro, que foi assumir cargo no governo, e o principal procurador da Lava Jato, Carlos Fernando dos Santos Lima (ó, surpresa!) para se dedicar ao mercado de compliance.
Não apenas isso. No Twitter, Deltan Dallagnol tentou tratar as denúncias contra a fundação como fake news.
A Lava Jato escolherá todas as organizações que virão a fazer parte da tal fundação.
Caberá ao próprio Ministério Público do Paraná a fiscalização da fundação.
A fundação poderá contratar projetos de amigos, palestras de amigos, consultorias de amigos e de amigos dos conselheiros, dentro do objetivo estatutário de combater a corrupção e estimular os trabalhos de compliance. E sempre haverá a notória especialização, já que se consideram os maiores especialistas em corrupção corporativa. E quem são os demais especialistas? Justamente as ONGs que serão convidadas a integrar seu conselho consultivo.
No Twitter, o procurador da República Wilson Rocha rompeu o pacto de silêncio da corporação e extravasou a indignação interna com os abusos da Lava Jato:
"O procurador @deltanmd afirma que a fundação será gerida pela sociedade. Ao confundir o Estado e suas instituições com a sociedade, os procuradores da "República da Lava Jato" flertam conceitualmente com o fascismo. Poucos se dão conta disso.
"A Lava Jato não faz acordo porque a Lava Jato não existe, não está na Constituição, em lei ou em ato normativo. O que existe é o Ministério Público Federal, instituição que não se confunde com a Lava Jato. Esse acordo e a fundação dele decorrente são um absurdo jurídico".