Com PL 529, Doria acaba com acesso dos mais pobres à moradia
Projeto de Lei extingue a CDHU e transfere atividades para a Secretaria de Habitação, comandada por ex-presidente do maior sindicato patronal do setor imobiliário da América Latina
Publicado: 02 Setembro, 2020 - 09h48 | Última modificação: 02 Setembro, 2020 - 09h58
Escrito por: Cida de Oliveira, da RBA
Se depender do governador João Doria (PSDB), a falta de moradia para a população de baixa renda tende a piorar em São Paulo. O Projeto de Lei (PL) 529 apresentado por Doria à Assembleia Legislativa no último dia 13, e que tramita em regime de urgência, prevê a extinção da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU).
A CDHU está entre os dez órgãos, autarquias e empresas que prestam serviços essenciais à população paulista que o governo Doria pretende extinguir com o PL 529, encaminhado a Alesp em meio a pandemia do novo coronavírus que já matou mais de 30 mil pessoas no estado. Assim como a Fundação para o Remédio Popular (Furp), que produz os medicamentos distribuídos nos postos de saúde e vendidos na rede de farmácias Dose Certa.
A proposta é considerada cruel, vergonhosa e absurda pela União dos Movimentos de Moradia (UMM). “O estado tem de estar na linha de frente do planejamento e execução de políticas habitacionais para a população de baixa renda, que não consegue atender as exigências dos bancos para obter financiamento. E a CDHU é voltada para atender essa população”, diz Evaniza Rodrigues, uma das líderes da UMM.
Ataques tucanos
Segundo a Secretaria Estadual da Habitação, a CDHU é uma das maiores companhias habitacionais do mundo. Fundada em 1967, ela atua diretamente na produção de moradias, na urbanização de favelas e áreas de risco e também na regularização fundiária urbana. Ainda de acordo com a secretaria, nesses mais de 50 anos foram construídas mais de 500 mil habitações no estado.
Evaniza destaca que a CDHU fez história com diversas políticas. Ela cita o o programa de mutirões, em que as moradias eram construídas por meio da autogestão, com qualidade e organização popular. Também lembra o programa de atuação em cortiços, beneficiando moradores da capital paulista e de Santos. Segundo a ativista, até o início dos anos 1990 as regras do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) permitiam mais recursos à CDHU. “Da primeira gestão de Geraldo Alckmin (PSDB) para cá, de 2001 a 2006, esses programas começaram a ser abandonados. O também tucano José Serra deu continuidade ao esvaziamento da CDHU que agora Doria quer extinguir”, diz.
No lugar dessas políticas exitosas, foi criado o Casa Paulista. Evaniza compara o programa a um guichê de transferência de recursos públicos para as construtoras e de parcerias público-privadas pouco transparentes. Na prática, explica, funcionam como um braço do setor privado dentro da estrutura do poder público.
Minha Casa Minha Vida
Por isso, a maioria dos programas da CDHU atualmente se resume a urbanização de favelas e ações em áreas de risco –, como o bairro Cota, na Serra do Mar, em Cubatão, com a remoção de famílias para outras regiões. E há ainda entrega de casas em áreas no interior do estado. “O que foi sendo deixado à míngua no decorrer dos anos, agora sofre risco de acabar. Apesar de esvaziada, a CDHU ainda é um braço executor de política habitacional. Se for extinta, a perda será muito grande”, diz a integrante do União dos Movimentos por Moradia.
A coordenadora estadual do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Jussara Basso, chama atenção para a queda na produção habitacional. Pela CDHU e pelo programa federal Minha Casa Minha Vida, duramente atingido pelo golpe de 2016. “Com o fim do MCMV, e mesmo com o (recém-anunciado) programa Casa Verde e Amarela, do governo Bolsonaro, não há provisão habitacional para a população de baixa renda. Daí a necessidade de retomada da empresa estadual e municipal de São Paulo, a Cohab. Mas cada vez mais as políticas voltadas para a área social vão sendo esvaziadas”, diz.
Segundo dados da Fundação Getúlio Vargas (FGV) relativos a 2018, só na Região Metropolitana de São Paulo o déficit habitacional é de 1 milhão de moradias. A instituição ainda não tem dados atualizados sobre o impacto da pandemia sobre a questão da habitação na região. Ou seja, mais de 1 milhão de famílias paulistas da região metropolitana mais rica do país não tem um teto. A maioria deles (67%) são famílias com renda de no máximo três salários mínimos.
PL 529 de Doria e o mercado
Segundo o anexo da minuta do PL 529, o desenvolvimento “dos programas estimuladores da atividade privada para o setor de habitação de interesse social”, como o Casa Paulista e o Minha Casa Minha Vida, e os “bons resultados alcançados com as Parcerias Público-Privadas para o setor”, a CDHU perdeu espaço na operação direta de construção e financiamento habitacional. Com essas alegações, Doria considera que suas atividades podem ser transferidas para a Secretaria de Habitação e os bens móveis e imóveis poderão ser vendidos ou destinados a outros usos.
A pasta da Habitação é comandada pelo empresário do setor imobiliário Flavio Amary. Por dois mandatos ele presidiu o sindicato patronal Secovi-SP, a maior representação latino-americana de empresas do setor imobiliário.
“Para o mercado imobiliário, moradia é para quem pode pagar. Uma especulação que afronta o direito de todos previsto no artigo 6º da Constituição”, destaca Evaniza, da União dos Movimentos de Moradia. A militante lembra que a CDHU é um programa de governo, não um banco. “Para financiar um imóvel, o banco faz todo um levantamento da vida da pessoa. Exige comprovação de renda permanente e, quando a pessoa passa por todo esse funil, obtém 80% do valor do imóvel que quer comprar. Ou seja, tem de ter um fundo de garantia e uma poupança, o que essas pessoas não têm. Para acessar seu direito, a população de baixa renda não é sujeita de crédito. É preciso haver subsídio, coisa que o setor privado não fará porque não dá lucro”, defende.
Na rua porque gostam
Jussara, do MTST, diz que o fim da CDHU, atrelado à falta de políticas sociais e de geração de emprego e renda, tende a aumentar o número de pessoas sem acesso ao direito à moradia, e as em situação de rua. “As pessoas não moram nas ruas porque gostam, como disse a primeira-dama, mas porque faltam políticas sociais”, contesta.
No início de julho, a artista plástica e primeira-dama do estado, Bia Doria, disse que a população em situação de rua está nesta situação porque “gosta”. Em conversa com a socialite Val Marchiori, disse que não se deve ajudar essas pessoas com marmitas, porque elas se acomodam. “É um atrativo.” Em 2016, ela havia declarado não conhecer o centro da capital.
“Por isso tudo é preciso uma forte mobilização que envolva todos os setores, que faça as pessoas e os parlamentares se levantar contra o PL 529 do Doria. Essa proposta que afeta tantos setores não pode passar”.
Edição: Paulo Donizetti de Souza