Escrito por: Paulo Donizetti de Souza, da RBA
Para José Graziano, idealizador do Fome Zero, para que uma alimentação saudável não custe quatro vezes mais do que a comida banal é preciso decisão política
O que a gente coloca no prato pode mudar o futuro da humanidade, acredita a culinarista Bela Gil. Defensora da alimentação saudável, a apresentadora de TV foi a primeira a falar na conferência “Reflexões sobre o Brasil em Tempos de Pandemia”. Promovida pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a live debateu, nesta quinta-feira (15), o assunto soberania alimentar. Também participaram da programação de quase três horas a antropóloga Maria Emília Pacheco, ex-presidenta do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e a atriz e ativista Letícia Sabatella. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o coordenador do MST João Pedro Stedile e o ex-diretor geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), José Graziano da Silva, completaram o evento.
Agrônomo e professor, José Graziano foi um dos mentores do programa Fome Zero, no primeiro governo Lula, Foi ministro extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome entre 2003 e 2004. Ele lembrou que quando começou a participar do governo o Brasil tinha 44 milhões de pessoas que não comiam o suficiente – ou 24% da população. “Hoje devemos ter 65 milhões nessa situação (cerca de 30% comem mal).”
O país que havia reduzido o contingente populacional na situação de fome, de pouco mais de 8% para 3,6% em dez anos, hoje já tem um forte retrocesso – para cerca de 5% dos brasileiros em menos de seis anos.
Assim como Bela Gil e Letícia Sabatella defendem alimentação produzida de forma agroecológica, Graziano reforça essa sintonia entre respeito ao meio ambiente e saúde humana. Segundo ele, uma dieta diversificada de nutrientes comporta 400 gramas de frutas, legumes, verduras, cereais. “Dieta saudável é pouco sal, pouco açúcar e sem gordura trans. E isso custa caro”, observa.
De acordo com a FAO, uma dieta mínima (baseada nos padrões industrializados e sem controle de agrotóxicos) custa algo em torno de R$ 3 per capita/dia. “E tem um custo oculto que não é contabilizado: o custo ambiental, dessas monoculturas que destroem o ambiente. Se mudarmos para alimentação saudável, reduz 75% do efeito estufa. E economiza 97% dos gastos com saúde em média no mundo”, afirma o professor, para quem a alimentação saudável é a melhor forma de saúde preventiva.
Essa dieta saudável – com vegetais, pouco sal, pouco açúcar e sem gordura trans –, no entanto, é inacessível para a maior parte da população. Custa R$ 11 per capita/dia, de acordo com projeções da FAO. Esse padrão de alimentação consumiria, calcula Graziano, 75% do orçamento médio de uma família só com alimentação. “Algo como 75 milhões de brasileiros não podem comer (dentro desses padrões) porque não podem pagar isso”, lamenta José Graziano. Ele acrescenta ainda que, em plena pandemia do novo coronavírus, produtores jogam fora leite, alface, legumes por não haver demanda. Mas que não se trata de demanda. “O que não tem é dinheiro para comprar.”
Um documento recente da FAO estima que 10% da população do mundo, 750 milhões de pessoas, passa fome. Isso corresponde aos Estados Unidos inteiro mais duas vezes o Brasil. “E a situação deve ter piorado na pandemia”, acrescenta Graziano. Somando esse quadro de gravidade extrema ao de insegurança alimentar moderada, serão 2 bilhões de pessoas. “Praticamente um terço das pessoas do mundo come menos do que o necessário para se manter vivo com dignidade.”
Graziano explica que é possível reduzir o custo da alimentação saudável. “Não é natural esse custo alto. Se comparar com um produto do agronegócio, eles são isentos de imposto de importação. São subsidiados nos fertilizantes, defensivos, têm crédito para máquinas e equipamentos, para custeio. E têm o mercado em dólar. O Banco Central é que regula o dólar. Está em R$ 5,50 por política monetária frouxa, que favorece os exportadores”, explica.
Para mudar essa situação, o ex-diretor da FAO cita algumas que mudanças necessárias, sobretudo em relação a tributação. “Tem de regular a Lei Kandir, que favorece a exportação. Dar isenção para produtos frescos. Investir em pesquisa e extensão de práticas ecológicas”, defende. E acrescenta: “Precisamos de investimento de infraestrutura para a agricultura familiar de proximidade. Se não tiver estrutura, boa estrada, capacidade de armazenagem, as perdas aumentam muito. São investimentos fundamentais”.
Já para aumentar o consumo, o Graziano diz que o caminho é a educação alimentar. “No mundo desenvolvido tem (educação alimentar) na escola, na televisão, na rádio. São concessões de serviço público obrigadas a fazer programa sobre como comer melhor. O principal elemento para aumentar o consumo é garantir mercado para esses produtos frescos”, afirma.
Graziano cita políticas abandonadas pelo governo Jair Bolsonaro. “Como o famoso PAA (o Programa de Aquisição de Alimentos), que o governo está matando por falta de recurso.” Abastecendo a merenda escolar, hospitais, ele explica, o programa tem capacidade de garantir a cota de 30% da agricultura familiar.
Além disso, o professor sugere taxar e rotular produtos que fazem mal à saúde. “Regulagem frontal: selo preto em produtos com alto teor de sal e açúcar. Deve entrar em vigor talvez daqui a dois anos. Temos de fazer isso começar a vigorar imediatamente. Não se negocia com a saúde, com a comida saudável.”
Consumir orgânicos, os alimentos produzidos sem agrotóxico, destaca Bela Gil, é uma forma de exercer responsabilidade social. “A comida é uma ferramenta poderosa de transformação. O impacto que tem a alimentação na nossa saúde, na sociedade, é muito grande. Qualquer mudança que você possa fazer para a saúde faz diferença. Comer é um ato político como qualquer outro ato de consumo. A gente entendendo o impacto das nossas escolhas alimentares, a gente consegue nortear o que quer para o nosso futuro.”
A culinarista observa que a agricultura é o setor que emite em torno de 50% dos gases de efeito estufa. “É um grande problema o modo como se produz alimentos hoje”, diz Bela Gil, citando a devastação, as queimadas, os agrotóxicos. “Mas isso que é um grande problema, pode ser a solução. Quando a gente muda, consegue mitigar o aquecimento global, regenerar o solo”, afirma.
Para ela, essa é uma das razões por se declarar “fã” do MST: “Por levar a agroecologia para o campo. Não só lutar pela terra”, resume. “Não dá mais pra viver num país que tem um setor que (diz que) leva o Brasil nas costas. A gente não coloca o PIB no prato pra jantar. Estamos há mais de 10 anos importando feijão da Argentina. Aqui, 1% das propriedades rurais tem quase 50% das terras. A reforma agrária é tão importante quanto a tributária.”
Letícia Sabatella destacou que a maneira de cuidar da terra é a maneira como vamos viver. “A produção de alimentos feita por mãos humanas, que respeite o todo, respeita a qualidade de vida. A agricultura familiar distribui o poder, empodera o pequeno agricultor. Isso trabalha a soberania alimentar familiarmente e nacionalmente”, afirmou. “A saúde e a segurança alimentar estão muito ligadas.”