Escrito por: Patrícia Gonçalves, Catraca Livre

Como é ser um LGBT negro em uma sociedade racista

Quatro pessoas contam como enfrentam e sobrevivem à LGBTfobia e ao racismo

Reprodução/Internet

A cada 25 horas, um LGBT é assassinado no Brasil. Em 2016, 343 foram mortos no país, segundo o Grupo Gay da Bahia (GGB), mas quando se é preto sabemos que a chance de estar nas estatísticas aumenta. Afinal, o tempo todo estamos sujeitos ao genocídio da população negra.

É uma luta dupla, cansativa e diária ser negro LGBT em uma sociedade racista e LGBTfobica, de acordo com o relato de quatro entrevistados: Regiane Silva, lésbica, Ézio Rosa, gay, Luiza Bonfim, bissexual, e Paulette Furacão, transexual.

Apesar disso, o relatório de 2016 do GGB, “Assassinato de LGBT no Brasil”, ainda possui dados escassos, já que poucas mortes são registradas por homofobia — ainda não criminalizada no país. A principal fonte de informação dos pesquisadores é a mídia, que há pouco tempo tem demonstrado interesse em veicular mortes como essas.

“Infelizmente, as reportagens policiais sobre crimes contra as minorias sexuais são muito lacunosas relativamente ao perfil demográfico das vítimas, dificultando sua melhor caracterização. Quanto à cor dos LGBT assassinados, 64% eram brancos, 36% negros”, registra o conteúdo da pesquisa.

14ª Caminhada de mulheres Lésbicas e Bissexuais, em 2016, São Paulo

Confira os relatos desses LGBT’s que lutam para sobreviver às opressões de um país persistente em condenar o amor e a cor.

COMO É SER UM LGBT NEGRO NO BRASIL?

Regiane Silva, lésbica, estudante

“A gente, por conta do racismo, já tem nosso corpo negado em muitos espaços. Então é necessário muita coragem para se assumir lésbica em uma sociedade que a heteronorma é uma regra, que torna nossa sexualidade maldita. Por combinar esses fatores, negados por uma sociedade que nem reconhece que mulheres negras são mulheres, é um ato de coragem ser uma mulher lésbica e negra.

Eu acho que a gente precisa debater o genocídio da população negra, debater a desmilitarização da polícia, além da formação com base em direitos humanos e discutir os números e reparação histórica dessa violência, porque ela afeta as pessoas negras LGBT’s e toda a diversidade de pessoas negras. Isso acaba moldando a sociedade, ela acaba sendo o fator da manutenção de armários, então esses debates nunca devem ser separados.” 

Ézio Rosa, gay, trancista

“O lugar-comum é estar constantemente no não lugar. Esperam dos homens uma performance ultramegaviril, hétero e branca e, quando rompemos essa expectativa sendo exatamente o oposto do esperado, colocamos em xeque a única forma de masculinidade ensinada e aprendida.

A principal diferença entre um gay negro e um gay branco é que o negro não será em nenhuma instância privilegiado (a não ser pelo motivo de ser homem) nesta sociedade que tem seus pilares fincados no racismo. Sendo assim, embora sejam ambos homens, os privilégios da raça ainda farão com que nós, negros, sempre estejamos em desvantagem.

O mecanismo principal que precisa ser adotado, para ontem, em nossa sociedade é o da escuta. Há décadas talvez não tivéssemos tantas pessoas falando, cantando e escrevendo o óbvio como atualmente. No entanto, nos dias de hoje, esbarramos o tempo todo com pessoas trazendo discussões feitas com seriedade na música, no teatro, na poesia e por aí vai. Inúmeras pessoas produzindo e elevando as discussões de raça, classe e gênero para um outro patamar, enquanto pouco se escuta, pouco se reflete. Não são nossas vozes que não ecoam o suficiente, são os ouvidos que estão viciados em uma única frequência.”

Rouseanny Luiza Bonfim, bissexual, professora

“O movimento LGBT ainda precisa reconhecer as diferenças dentro dele. E isso não é hierarquizar opressões, é entender que existem múltiplas identidades. Existem pautas que são invisibilizadas, como a saúde de mulheres lésbicas e bissexuais, ou a questão racial que pode agravar um contexto de violência por orientação sexual,inclusive dentro do movimento.

Ao mesmo tempo que esses espaços precisam ser criados e protagonizados por nós, é necessário que ouçam nossas demandas, que pensem de fato todas as letras do movimento sem hierarquia, que a questão racial e de gênero sejam discutidas de forma interseccional.

Aprendi com uma amiga que é difícil você cuidar de alguém se não se cuida e que falar é um espaço de cura. Somos silenciados durante a vida, adquirimos uma timidez e submissão que não nos pertence,  somos ensinados a não questionar e ignorar o que nos fere, não apenas no aspecto emocional, mas nos direitos básicos sociais. E se falássemos sobre isso em vez de fingir que somos todos iguais? E se a gente propusesse romper a realidade social a partir de novas narrativas, outros olhares?

Não posso deixar de falar o quanto é prazeroso vivenciar plenamente minha bissexualidade, olhar essa minha multiplicidade e não me envergonhar, entender que vou ser sempre resistência e que nem sempre isso precisa ser angustiante, ainda mais quando somosfortalecidos coletivamente.”

Paullet Furacão, transexual, educadora social

“Ser uma transexual é sofrer todos os estigmas possíveis em um país considerado o país da diversidade, do acolhimento e que tem políticas efetivas para sua população. Imagine ser uma negra e ainda trans? É saber que eu preciso lutar duplamente para conseguir políticas efetivas.

Pensar em uma travesti negra e em uma travesti branca é também pensar que as políticas não conseguem ser implementadas para a população negra. Mesmo sendo uma transexual no Brasil, é muito mais fácil que as políticas possam alcançar uma população travesti branca, mas não acontecerá o mesmo fenômeno com as travestis e transexuais negras.”


Transexualidade

É possível compreender que entre todas as situações lgbtfóbicas, a que está mais distante das discussões do movimento LGBT e da sociedade são as que atingem transexuais e travestis. A impressão se confirma quando, por exemplo, falamos do Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS).

Para Márcia Cristina Brasil Santos, doutoranda em serviço social pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), assistente social e coordenadora técnica ambulatorial da Unidade de Atenção Especializada no Processo Transexualizador (HUPE/Uerj), as instituições não estão preparadas para lidar com o racismo nessas etapas.

“Eu percebo que um grande número de pessoas trans negras não conseguem chegar ao atendimento. Existem passos e obstáculos que precisam ser dados/superados para que a pessoa consiga chegar aoatendimento. Exigem que a pessoa tenha dinheiro para se locomover até o local, que tenha desenvoltura para acessar as informações necessárias, disponibilidade para transitar durante o dia, em horário determinado pela instituição, que consiga superar a timidez e insegurança para falar com os ‘doutores’, enfim... são muitas questões”.

A coordenadora ainda relata que a falta de percepção do problema chega de todos os lados, e que a solução está distante mesmo com o avanço de um serviço público que oferece cirurgias de transgenitalização desde 2007.

“Essa problemática não tem sido ou tem sido pouco percebida, por isso não é questionada. Nem por profissionais nem por usuários. As instituições são o reflexo da sociedade e ainda temos muito a caminhar nesse aspecto. Se o racismo já é cruel e dinamizador de injustiça social, quando se entrecruza com a diversidade de gênero e identitária, tais injustiças são elevadas à máxima potência.”