Como funciona a taxação de grandes fortunas em outros países?
Discussão ganhou força no contexto da pandemia, mas não está nos planos do governo Bolsonaro
Publicado: 28 Agosto, 2020 - 09h40
Escrito por: Pedro Rafael Vilela Brasil de Fato | Brasília (DF)
A criação de um imposto sobre grandes fortunas (IGF) emergiu das sombras no contexto da pandemia do novo coronavírus, que vem deixando milhões de pessoas desempregadas e diminuindo drasticamente a capacidade de arrecadação dos governos, num ciclo vicioso que deve agravar ainda mais o drama social do país. A forma absurdamente desigual como a crise se abate sobre a sociedade brasileira ficou evidente em um recente relatório da organização Oxfam, divulgado no final do mês passado.
O informe Quem paga a conta? mostra que, mesmo em plena pandemia, 73 bilionários da América Latina e do Caribe aumentaram suas fortunas em US$ 48,2 bilhões (equivalentes a cerca de R$ 268.624 bilhões) entre março e junho deste ano. Isso equivale a um terço do total de recursos previstos em pacotes de estímulos econômicos adotados por todos os países da região. O Brasil tem 42 desses bilionários que, juntos, tiveram suas fortunas aumentadas em US$ 34 bilhões (R$ 189.486 bilhões).
Por outro lado, a Oxfam aponta que a perda de receita tributária para 2020 pode chegar a 2% do Produto Interno Bruto (PIB) da América Latina e Caribe, o que representa US$ 113 bilhões (R$ 629.761) a menos e equivale a 59% do investimento público em saúde em toda a região. Mesmo diante desse cenário, no Brasil os super ricos são os que menos pagam impostos. Para enfrentar essa injustiça, uma dezena de especialistas, sob a coordenação técnica do economista Eduardo Fagnani, elaborou um documento que reúne oito propostas de leis tributárias para isentar os mais pobres e as pequenas empresas e, ao mesmo tempo, gerar um acréscimo na arrecadação estimado em R$ 292 bilhões, com tributação incidindo sobre as altas rendas e o grande patrimônio, onerando apenas os 0,3% mais ricos.
"Não é socialismo"
Em sua coluna no Brasil de Fato, o auditor fiscal Dão Real Pereira dos Santos, diretor de Relações Institucionais do Instituto Justiça Fiscal (IJF), uma das entidades que subscreve o documento, destacou o alcance da medida, caso fosse implementada no país.
"Desde 1988, existe na Constituição Federal, a previsão de instituição do Imposto sobre Grandes Fortunas, mas até hoje nunca se conseguiu instituí-lo. A proposta de IGF apresentada tem potencial de arrecadação da ordem de R$ 40 bilhões, com incidência de alíquotas de apenas 0,5%, 1% e 1,5%, sobre faixas de riqueza de R$ 10 milhões a R$ 40 milhões, R$ 40 milhões a R$ 80 milhões e acima de R$ 80 milhões, respectivamente. De acordo com as informações dos contribuintes do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF), somente 59 mil pessoas (0,028% da população) é que declaram patrimônio superior a R$ 10 milhões", escreveu.
Além disso, o imposto sobre grandes fortunas praticamente não causa distorções no sistema econômico, como afirma o economista Pedro Humberto de Carvalho, especialista em tributação, com doutorado pela Universidade de Pretrória (África do Sul). "Ele é um imposto que não afeta lucro das empresas, não afeta os investimentos, não afeta os salários dos trabalhadores".
Da parte do governo de Jair Bolsonaro, cujo programa é voltado aos interesses do mercado financeiro, um imposto sobre grandes fortunas nem sequer foi cogitado. A reforma tributária apresentada pelo ministro Paulo Guedes, em julho, apenas unifica dois impostos federais e cria um alíquota de 12% sobre o consumo, que vai onerar até mesmo os produtos da cesta básica, encarecendo ainda mais o custo de vida da classe trabalhadora e dos mais pobres. Em recente entrevista ao portal UOL, o ex-ministro Guilherme Afif Domingos, assessor especial do ministro Paulo Guedes (Economia), defendeu um novo imposto sobre transações financeiras, nos moldes da antiga CPMF, ao invés de taxar grandes fortunas. "Quem tem grande fortuna tem uma bruta mobilidade. E nós precisamos dessa fortuna aqui, para o nosso investimento. Eu prefiro um imposto sobre todas as transações, do que querer pegar um imposto sobre grande fortuna que o cara possa fugir. Então, eu acho que não é eficaz", afirmou.
Na opinião do economista Pedro Humberto, essa justificativa é frágil. "Como o número de contribuintes é pequeno, a Receita Federal pode ter instrumentos para combater essa evasão fiscal. A fuga de capitais para paraísos fiscais já é um problema que ocorre mesmo não havendo essa tributação. Com a tecnologia atual, você tem muito mais chance de pegar quem evade, quem sonega a fortuna, no caso".
Longe de ser uma medida intervencionista, como parte dos economistas neoliberais afirma, o imposto sobre grandes fortunas está na origem do liberalismo econômico mais tradicional, afirma André Calixtre, que é mestre em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e técnico de planejamento e pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
"A ideia de você tributar grandes fortunas foi construída dentro do pensamento liberal. As pessoas pensam que isso é coisa de socialista, o que não é verdade. A ideia do liberal, neste caso, é que você tem que ter igualdade de oportunidades. Se você tem famílias que partem de um estoque de riqueza muito elevado em relação às outras, você acaba com a tese da igualdade de oportunidades. Do ponto de vista liberal, eu tenho que coibir excessos nessa distribuição de patrimônio para garantir que as pessoas possam concorrer em pé de igualdade na sociedade, por isso que você taxa grandes fortunas e taxa a herança, essas são as duas formas mais clássicas de se fazer essa redistribuição de estoques", argumenta.
Um estudo do economista Pedro Humberto de Carvalho, em parceria com Marc Morgan, fez um levantamento sobre como funciona a taxação sobre grandes fortunas em oito países selecionados, incluindo três latino-americanos: Argentina, Uruguai e Colômbia. O estudo, que ainda não foi publicado no país, traz um balanço atualizado da experiência internacional. A reportagem do Brasil de Fato obteve acesso exclusivo ao material, e destaca as principais características sobre como funciona o imposto sobre grandes fortunas em países onde ele é regulamentado.
Noruega e Suíça
Nesses dois países europeus, o imposto sobre fortuna é descentralizado, sendo arrecadado pelos governos regionais, e cobrado apenas de pessoas físicas (empresas não são taxadas). Na Noruega, as alíquotas são de 0,7% para as comunas (uma divisão regional norueguesa) e 0,15% para o governo central, sob um limite de isenção nacional de 1,48 milhão de coroas norueguesas, que corresponde a cerca de R$ 926.173. Significa, portanto, que só quem tem bens e ativos financeiros acima desse valor são tributadas. Por ano, a arrecadação desse tributo representa 0,5% do PIB do país e recai sobre cerca de 15 mil contribuintes, num país de 5,4 milhões de habitantes.
No caso da Suíça, o imposto sobre grandes fortunas atinge 1,2% do PIB, segundo dados de 2015. As alíquotas são progressivas e variam de 0,3% a 1%, com limite de isenção de 180 mil euros ( R$ 1.186.35) e maior parte dos recursos também é apropriada pelos governos regionais do país.
França, Espanha e Argentina
Em comum, os três países possuem impostos sobre grandes fortunas centralizados e cobrados apenas sobre pessoas físicas. Na França e na Espanha, as alíquotas são progressivas. Na Argentina, a alíquota é única.
Há cinco alíquotas do IGF na França, que vão de 0,5% a 1,5%. O limite de isenção é de até 1,3 milhão de euros (R$ 8.563 milhões), sendo há uma faixa máxima de progressão de até 10 milhões de euros (R$ 65 milhões) a partir da qual a alíquota incidente é sempre de 1,5%. Há uma regra que impede que a cobrança do imposto exceda 75% da renda individual declarada. Em 2017, o número de contribuintes desse imposto na França foi de 358 mil, frente a uma população total de cerca de 67 milhões de pessoas, o que dá menos de 0,5% dos habitantes.
Na Espanha, o imposto sobre grandes fortunas vigorou por mais de 15 anos até ser extinto em 2008, mas acabou sendo reintroduzido no país em 2012. A faixa de isenção é de 700 mil euros (R$ 4,6 milhões) e as alíquotas mínimas variam de 0,5% (piso) a 2,5% (teto), mas algumas regiões do país chegam a cobrar percentuais superiores. A arrecadação é de cerca de 0,2% do PIB espanhol. A residência principal e a propriedade de certas ações de empresas são isentas da taxação, que também não pode exceder a 60% da renda declarada.
Na Argentina, o limite de isenção do imposto é de cerca de 2 milhões de pesos argentinos, segundo dados de 2019, algo que equivale a cerca de R$ 152 mil, na cotação atual. A alíquota, que chegou a ser de 0,75%, foi reduzida para 0,25% nos últimos anos. Atualmente, o IGF argentino arrecada cerca de 0,1% do PIB.
Luxemburgo, Uruguai e Colômbia
Nesses países, o IGF também é cobrado em nível federal, e inclui, além de pessoas físicas, a riqueza declarada das empresas.
Em Luxemburgo, só é cobrado de empresas, que são tributadas em seus ativos líquidos (riqueza menos dívida) sob uma alíquota de 0,5% e um limite de isenção de 12,5 mil euros (R$ 82,2 mil). Há ainda uma sobretaxa para as empresas que excederem riquezas de 500 milhões de euros (R$ 3,2 bi). As receitas do imposto representam cerca de 1,8% do PIB do país.
No Uruguai, o imposto sobre grandes fortunas é cobrado tanto de pessoas quanto empresas, abrangendo bens e ativos financeiros acima de 113 mil euros (R$ 742 mil), segundo dados de 2018. A tributação está em vigor há 31 anos. As alíquotas são progressivas, variando de 0,5% a 1,5%. No caso das empresas, a alíquota pode chegar 2,8%. A receita representa cerca de 1% do PIB do país.
Na Colômbia, o IFG é cobrado sobre o patrimônio de pessoas e empresas que excedem mais de 266 mil euros (R$ 1,7 milhão), segundo dados de 2018. As alíquotas também são progressivas e variam de 0,125% a 1,5%. Segundo o governo do país, a arrecadação representa cerca de 0,65% do PIB, e alcança cerca de 60,6 mil contribuintes (entre pessoas e empresas).
Menos de 0,2% da população
Dados do Ministério da Economia, de 2016, mostram que cerca de 25,7 mil pessoas, que representam apenas 0,2% da população adulta no país, concentram uma fortuna média equivalente a R$ 52,2 milhões, ou seja, 16,6% de toda a riqueza declarada. Um grupo um pouco maior, de 324 mil pessoas (1,2% da população) tem renda média de R$ 52,8 mil e concentram 32,9% da riqueza líquida declarada. Em seu estudo comparativo, o economista Pedro Humberto de Carvalho afirma que um imposto progressivo sobre grandes fortunas poderia gerar cerca de R$ 38,84 bilhões em receitas, o que representa 0,63% do PIB. Esse valor seria mais que suficiente para custear o programa Bolsa Família, por exemplo, que foi orçado, este ano, em cerca de R$ 29,5 bilhões.
Outras medidas tributárias
Além do imposto sobre grandes fortunas, especialistas consultados pelo Brasil de Fato também defendem a volta da tributação de lucros e dividendos, que deixou de ser cobrada em 1995, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Estudo recente da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Unafisco) e apontou que o governo poderia arrecadar quase R$ 60 bilhões por ano com esse imposto.
Outra medida tributária para combater as desigualdades de renda seria uma reformulação do imposto sobre herança. Ele até existe no Brasil como imposto estadual, em que as alíquotas variam de acordo com a unidade da federação, com máxima de 8%, definido em legislação federal.
"De fato, apesar de seu pouco potencial arrecadatório, a tributação por herança pode impedir a concentração excessiva de riqueza e sua perpetuação através das gerações. Após a Segunda Guerra Mundial, a tributação sobre herança foi fortemente usada como instrumento distributivo entre as economias avançadas", afirmam Pedro Humberto e Marc Morgan na pesquisa sobre taxação de grandes fortunas.
Para se ter uma ideia, nas principais economias capitalistas, como os Estados Unidos, a alíquota desse imposto chega a ser de 40%. No Japão é de 55%, seguido pela Coreia do Sul (50%) e França (45%).