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Conflito entre quilombolas e fazendeiro teve tentativa de homicídio e milícia

A batalha pelo ouro roxo: MPF cita “risco de morte” se decisão judicial em área rica em açaí não for cumprida

Publicado: 08 Outubro, 2019 - 12h54 | Última modificação: 08 Outubro, 2019 - 13h06

Escrito por: Julia Dolce/Agência Pública

Julia Dolce/Agência Pública
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Alfredo Batista Cunha contorna o mapa com os dedos para mostrar a terra pleiteada pela comunidade remanescente de quilombo do Gurupá, na Ilha do Marajó, uma região no Pará de mais de 10 mil hectares disputada por pretos quilombolas e brancos fazendeiros. A titulação do território, já conquistada pelos quilombolas na Justiça, envolve a disputa do açaí, conhecido como “ouro roxo” paraense.

Para mostrar uma das consequências dessa disputa fundiária, Alfredo acompanha a reportagem da Agência Pública em uma viagem de mais de meia hora de rabeta, nome dado aos pequenos barcos com motor de popa, até um acampamento nas margens do rio Arari. Lá o apanhador de açaí Gilberto Amador, um homem tímido, de voz quase inaudível, mostra uma cicatriz no quadril, onde até hoje se encontra alojada a bala disparada no dia 29 de setembro de 2016 pelo administrador da fazenda São Joaquim Agropecuária Ltda., Assis da Silva Leal.

Gil, como Gilberto é conhecido, conta que cerca de 30 seguranças da fazenda chegaram em barcos, atirando com pistolas e espingardas de dois canos. “Diziam: ‘Mata esse filho da puta’. Era pra matar. Mandaram eu me deitar no chão”, completou, ainda com timidez. A mesma versão consta em seu depoimento no Boletim de Ocorrência (BO), numa investigação que ainda não foi concluída.

Gil é uma das vítimas de uma disputa de mais de meio século com a fazenda São Joaquim. Ao mesmo conflito a comunidade atribui o assassinato de dois quilombolas, um paralisado em cadeira de rodas, além de inúmeras autuações por furto do açaí em terras que a fazenda diz ser dela – ao contrário do que decidiu a Justiça. E apesar de ter conquistado, em todas as esferas, o título de demarcação, a comunidade Gurupá continua sendo ameaçada pela São Joaquim, afirmam os entrevistados pela reportagem.

Seus donos, o falecido Liberato Magno de Castro e seus herdeiros, se autodenominam proprietários de quase metade da área titulada, incluindo todos os açaizais margeados pelo rio Arari. Relatórios públicos já apontaram, no entanto, que a área foi grilada por Liberato.

Do processo de titulação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), resta a desintrusão, ou seja, a expulsão dos não quilombolas daquele território. A lentidão no processo levou a Advocacia-Geral da União (AGU) a entrar, no último dia 26 de setembro, com uma ação de reintegração de posse para anular o título de propriedade e cancelar os registros imobiliários da fazenda São Joaquim.

Para o Ministério Público Federal (MPF), este é um dos conflitos mais graves envolvendo quilombolas em todo o estado do Pará. A história da comunidade, localizada nas margens do rio que a nomeia [Gurupá], remonta à fuga de pessoas escravizadas em meados do século 19 em uma fazenda na beira oposta do rio Arari, onde o Gurupá deságua. Com o passar das décadas, as três famílias originárias da comunidade, uma delas a Batista, ascendência de Alfredo, tornaram-se uma comunidade de 47 famílias, cuja subsistência sempre foi tirada da floresta amazônica, retirando o açaí para consumo. No início dos anos 1970, a chegada do fazendeiro Liberato na região mudou tudo, explica Alfredo.

Advogado e pecuarista de renome no Marajó, Liberato também teve ascendentes que participaram do período escravocrata, caso de sua bisavó, a baronesa Maria Leopoldina Lobato de Miranda. Historicismo à parte, os quase 900 quilombolas de Gurupá lembram, por vivência ou por relatos, quando o fazendeiro chegou dizendo que aquelas terras rasgadas por águas lhe pertenciam, e seus empregados atearam fogo nas casas de seus familiares. À época, as famílias foram expulsas para as margens do rio Gurupá e, desde então, a fazenda explora os recursos disponíveis no resto da região. “Minha tia Joana, quando chegou da roça, viu sua casa toda em chamas e suas coisas debaixo das árvores”, conta Alfredo.

Se antes as famílias viviam espalhadas por diversos igarapés repletos de açaizais, hoje dezenas de casinhas margeiam as curvas do Gurupá, único lugar liberado pelo fazendeiro para exploração do açaí. O conflito pela “posse” do fruto se intensificou na última década com a valorização do preço, cuja polpa, principal fonte de renda da comunidade quilombola, é exportada do Pará para o mundo todo. Em 2018, o Pará exportou 2,3 mil toneladas do ouro roxo, cuja rota chega a quase todos os continentes, de acordo com a Federação das Indústrias do Estado (Fiepa).

Grilagem x titulação

A safra do açaí tem início no mês de julho e vai até dezembro, e é quando os quilombolas conseguem tirar a maior parte de sua renda, dos açaizais que ficam na área protegida pelo administrador da São Joaquim, Assis da Silva Leal. Anualmente, a fazenda arrenda os açaizais para trabalhadores trazidos de outras comunidades, que trabalham como meeiros, ou seja, deixando metade do lucro para os proprietários da fazenda.

Em processo de demarcação desde 2008, a portaria de reconhecimento da Gurupá já foi publicada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), em dezembro de 2014, e assinada em Decreto pela Presidência da República, em abril de 2016. A suposta propriedade da São Joaquim, por sua vez, é considerada pela Secretaria de Patrimônio da União (SPU) terra pública desde o final de 2017.

Concluiu-se que os documentos apresentados por Liberato não apenas são inválidos na atualidade, por remontarem até mesmo às cartas de sesmarias distribuídas às famílias nobres pelo império português, mas, na verdade, dizem respeito a outra área, de outro município.

Os antecedentes do fazendeiro, além de serem considerados nobres, têm um longo histórico de participação na política estadual. Já Liberato, além de proprietário da São Joaquim, foi sócio de um consórcio de fazendas chamado Itaqui Agropecuária Ltda., filiada à Associação Brasileira dos Criadores de Zebu (ABCZ), e sócio de um escritório de advocacia em Belém. O fazendeiro chegou a ser citado no livro Donos da terra: trajetórias da União Democrática Ruralista (UDR), da historiadora Marcionila Fernandes, como membro da sede marajoara da UDR.

Apesar de sua morte no início de 2018, seus herdeiros seguem brigando pela propriedade da terra. Uma das filhas de Liberato, Consuelo Castro, foi prefeita do município de Ponta de Pedras, vizinho a Cachoeira do Arari, entre 2012 e 2016, pelo PSDB. Outro filho, Leão Neto, coleciona diversas postagens no Facebook criticando os direitos indígenas, a reforma agrária e até mesmo a repercussão internacional das queimadas na Amazônia.

Já o administrador da São Joaquim, Assis, chamado pelos quilombolas de feitor ou até de capataz, teria ainda o auxílio de seguranças da fazenda e da Polícia Civil do município de Cachoeira do Arari, onde fica a comunidade, na proteção da fazenda, segundo os quilombolas. É o que denuncia Alfredo, hoje presidente da Associação Remanescente do Quilombo de Gurupá (Arquig). “Nossa luta é travada há mais de cem anos, e, no caso desse fazendeiro que se diz dono da área, há 47 anos. Hoje a terra é decretada dos ribeirinhos e dos quilombolas, mas as pessoas que perdem não sabem perder. As pessoas levam revés porque saem para uma batalha dessa”, conta, revelando preocupação pelos quilombolas que seguem na linha de frente do conflito.

A comunidade quilombola do Gurupá espera, há quase dois anos, que o Incra realize a desintrusão do território, já adiada diversas vezes sob alegação de falta de orçamento. Além da São Joaquim, outra fazenda, chamada Caju, e mais sete propriedades de pequenos produtores que não se consideram quilombolas estão dentro do território da comunidade Gurupá. No entanto, só essas pequenas propriedades receberão indenização para serem retiradas da área, uma vez que as fazendas consideradas “de má-fé” são griladas.

Como explica o procurador da Câmara de Comunidades Tradicionais e Povos Indígenas do MPF de Belém, Felipe de Moura Palha e Silva, a ausência de recursos não serve para justificar a não retirada da propriedade dos herdeiros de Liberato. “A desintrusão tem que acontecer para ontem, porque enquanto não retirarem [a fazenda] os conflitos continuarão acontecendo nesta safra do açaí”, explica. Contatada por telefone e e-mail, a Superintendência Regional do Incra no Pará não respondeu sobre razão do adiamento da desintrusão.

Enquanto isso, segundo Silva, o conflito na comunidade de Gurupá é “de risco de morte iminente”. “A partir do momento em que a área já foi definida para eles, e eles agem conforme a legitimidade de sua titulação, isso gera ação contrária por parte do poder político local, do fazendeiro, da polícia”, completa.

Diante da morosidade da situação, o MPF acionou a AGU, que entrou com uma ação ordinária com pedido de tutela de urgência pela efetivação da desintrusão, “determinando que a ré desocupe a área, abstenha-se de voltar a ocupá-la e/ou de impedir o acesso à mesma, inclusive mediante o uso de força policial […] sob pena de cominação [ameaça] de multa”, coloca o documento.

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