Escrito por: André Accarini
Resolução do Conselho Federal de Medicina proíbe médicos de prescreverem terapia hormonal para menores de 18 anos. Decisão é refutada pela CUT. “Retrocesso que coloca vidas em risco”, diz dirigente
O Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania -e do qual a CUT faz parte-manifestou repúdio à resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que proíbe a classe médica de prescrever e promover atendimento com bloqueadores hormonais para tratamento das pessoas com incongruência ou com disforia de gênero. Saiba o que é a terapía ao final da matéria.
A resolução 2427/25, do CFM, publicada na quarta-feira (16), determina que a terapia hormonal só pode ser iniciada a partir dos 18 anos e aumenta para 21 anos a idade para realização de cirurgia de redesignação sexual. A regra até agora era a proibição para menores de 16 anos.
O principal argumento é de que pode haver riscos à saúde das pessoas, como de câncer, doenças cardiovasculares, problemas ósseos, entre outros.
No entanto, o Conselho Nacional LGBTQIA+ afirma que toda e qualquer mudança que impacte a vida da população LGBTQIA+, em especial as pessoas trans, deve ser debatida com toda a sociedade.
Defendemos que toda e qualquer normatização que impacte diretamente a vida e os direitos dos grupos historicamente vulnerabilizados deve ser amplamente debatida com a sociedade civil, especialistas da área de saúde, conselhos de direitos e, sobretudo, com as próprias pessoas afetadas”, Conselho Nacional LGBTQIA+- Conselho Nacional LGBTQIA+A nota reitera ainda que a norma, para ser revista, deve “ter acompanhamento por meio de um processo transparente e participativo, com a inclusão de representantes da comunidade LGBTQIA+, especialistas em saúde e órgãos de controle social”.
Leia a íntegra da nota do Conselho Nacional LGBTQIA+
Retrocesso
O secretário nacional de Políticas LGBTQIA+ da CUT e representante da Central no Conselho Nacional LGBTQIA+, Walmir Siqueira, considera que a resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) é 'descabida e representa um retrocesso se precedentes’.
“Causa uma grande surpresa isso ter vindo do CFM. Ao se que entende, é mais uma questão ideológica do que científica. Portanto, é mais um retrocesso que atinge nossa comunidade. Estamos falando da vida das pessoas. Eles colocam a pessoa menor de idade como se não fosse capaz de identificar sua própria natureza e como se a manifestação de identidade gênero só pudesse ocorrer depois dos 18 anos”, diz Walmir.
Há diversos estudos especializados em sexualidade humana que reafirmam que o ser humano já reconhece sua identidade de gênero entre os três e cinco anos de idade.
Vale lembrar que o próprio CFM, em 2019, havia ampliado o atendimento com a terapia para pessoas a partir de 16 anos, o que segundo especialistas, foi uma medida positiva porque permitiu um maior acompanhamento e acolhimento das pessoas trans, evitando que elas buscassem, por exemplo, tratamentos alternativos e clandestinos.
Agora, com essa nova resolução, de acordo com o dirigente da CUT, o caminho de avanços no acolhimento se inverte. “É um absurdo porque coloca a saúde mental e a vida em risco. Tratam as pessoas trans como sendo cidadãos de segundo plano”, critica, alertando para situação daquelas pessoas que já estão em terapia hormonal e terão de interromper o processo.
A comunidade trans já vive com o sentimento de estar presa dentro de um corpo. Agora isso é prisão perpétua. Não poderá tentar pertencer à sociedade usando sua liberdade para ser o que é. Essas decisões vêm quem ‘não está nem aí’ com a natureza das pessoas, colocando-as em sofrimento- Valmir Siqueira.O reconhecimento do próprio gênero, pontua Walmir Siqueira, é parte fundamental do desenvolvimento emocional e psicológico de um ser humano e negar o acompanhamento é invisibilizar essas pessoas, impondo sofrimento tanto para elas quanto para suas famílias.
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Arrependimento e risco de suicídio
Outro argumento usado pelo CFM é o de que houve um aumento de relatos de arrependimento de transição e mesmo de destransição sexual desde 2020, o que levou diversos países a revisarem seus protocolos para lidar com a incongruência e a disforia de gênero.
Em entrevista coletiva, o médico ginecologista Rafael Câmara, conselheiro do CFM pelo estado do Rio de Janeiro e um dos relatores da resolução afirmou que “mais crianças e adolescentes estão sendo diagnosticados com disforia de gênero e, com isso, levados a tratamentos. Muitos, baseado em estudos, no futuro, poderiam não ser trans, mas simplesmente gays e lésbicas”.
Outro lado: Reportagem publicada pela BBC News Brasil, em janeiro de 2020, traz o médico urologista Tiago Elias Rosito, cirurgião-chefe do Programa de Identidade de Gênero (Protig) do Hospital de Clínicas em Porto Alegre, um dos que são considerados referência no assunto no Brasil, afriando que "a transexualidade — ou a não identificação com o próprio corpo — é totalmente independente da orientação sexual da pessoa".
Estudos mostram que os casos de arrependimento são extremamente raros — menos de 1% — e muitas vezes estão relacionados a falta de suporte familiar e social, e não à transição em si.
Walmir questiona quais os dados específicos sobre arrependimento – e mesmo de suicídio – entre jovens que aderiram à terapia hormonal. “Não se pode ter uma resolução como essa baseada em estudos que não são aprofundados. Se houve um caso, há que se avaliar o motivo real, que pode e deve ser externo”.
Ele explica que ainda que a pessoa tome a decisão de assumir sua identidade de gênero, o que para ela, será um caminho ‘de libertação’, ela ainda terá de enfrentar o preconceito institucional da sociedade.
Sobre casos de suicídio, diversas pesquisas indicam que a falta de acesso à afirmação de gênero — incluindo a terapia hormonal — está diretamente relacionada ao aumento de sofrimento psíquico e risco de suicídio entre pessoas trans.
Dados de estudos internacionais mostram que o acesso ao tratamento hormonal reduz significativamente as taxas de depressão, automutilação e suicídio em adolescentes trans. Negar esse acesso, portanto, não é uma “proteção”, como argumenta o CFM, mas sim uma omissão perigosa que pode agravar ainda mais a vulnerabilidade dessa população.
“É preciso termos em mente que quando se fala em suicídio entre as pessoas trans, estamos falando sobre a falta de acesso e acolhimento à sua identidade de gênero. Em geral, são fatores externos que causam o adoecimento mental podendo levar a casos extremos”, explica Valmir Siqueira.
Por isso, ele reforça que ações como a resolução do CFM ajudam a aumentar as estatísticas de violência contra a população trans, que já é a que ‘mais morre entre as pessoas LGBTQIA+'.
O que é a terapia hormonal
A terapia hormonal para pessoas trans, também chamada de hormonização é um tratamento médico com o objetivo de alinhar as características físicas da pessoa com sua identidade de gênero.
Para mulheres trans, ou seja, as pessoas designadas como do gênero masculino nascer, mas que se identificam como mulheres, a terapia é feita com estrogênio (hormônio feminino) e bloqueadores de testosterona (hormônio masculino)
O estrogênio desenvolve características femininas, como crescimento de seios, redistribuição de gordura corporal (quadris), pele mais fina.
Os bloqueadores de testosterona reduzem o hormônio diminuindo pelos faciais e corporais, e reduzindo a calvície.
Para homens trans, pessoas designadas como do gênero feminino ao nascer, mas que se identificam como homens, a terapia é feita com testosterona, que promove o crescimento de pelos faciais e corporais, engrossa a voz, aumenta a massa muscular, redistribui gordura corporal, interrompe a menstruação.
Algumas pessoas não binárias fazem uso parcial ou adaptado da terapia hormonal, de acordo com seus objetivos de corpo e identidade. O tratamento pode ser individualizado, com doses menores, uso de apenas um hormônio, ou outro protocolo.
Os tratamentos devem ter o acompanhamento de profissionais das seguintes especialidades: endocrinologista, psicologia ou psiquiatria, especializados em identidade de gênero, clínica geral e assistente social (em contextos do SUS ou de políticas públicas)