Escrito por: Vitor Shimomura Brasil de Fato | São Paulo (SP)
Documento alerta sobre os impactos dos venenos agrícolas na saúde e propõe agroecologia como alternativa
Problemas no sistema nervoso, depressão, transtornos motores e mentais. Esses são alguns dos efeitos dos agrotóxicos na saúde das pessoas. Os impactos da contaminação foram reunidos em mais um dossiê da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida. O sumário executivo foi lançado nesta quinta-feira (15) e versão integral será publicada em maio.
O documento, feito em parceria com a Associação Brasileira de Agroecologia (Aba) e a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), apresenta produções técnico-científicas que fundamentam críticas ao “PL do Veneno” (PL 6299/02). O projeto de lei aguarda votação na Câmara dos Deputados e pretende flexibilizar a Lei dos Agrotóxicos de 1989 (Lei nº. 7.802/89). Desde o começo do mandato, o governo de Jair Bolsonaro (sem partido) já liberou mais de 1,1 mil novos produtos químicos no Brasil.
Em consequência do uso excessivo, as intoxicações por agrotóxicos retratam um problema grave de saúde pública no Brasil. Entre 2010 e 2019, foram 45,7 mil atendimentos de intoxicações por agrotóxicos e 1,8 mil pessoas morreram. Para a toxicologista e integrante do Grupo Temático Saúde e Ambiente da Abrasco, Karen Friedrich, a parte mais frágil, que são os trabalhadores e suas comunidades, acabam sofrendo os maiores danos.
“A gente visitou e revisitou alguns estudos, os relatos de comunidades tradicionais, comunidades expostas, comunidades do campo, trabalhadores da cidade também que utilizam inseticidas. E a gente está vendo a manifestação, infelizmente, de efeitos sobre o sistema nervoso, de depressão, transtornos motores, transtornos mentais e alteração de material genético associados à exposição aos agrotóxicos. É um coquetel de veneno que a gente está exposto.”
Friedrich destaca que a Lei dos Agrotóxicos de 1989 prevê que sejam proibidos produtos que causem problemas no sistema hormonal, no sistema reprodutivo, que causem câncer, má formação fetal e mutação do material genético. No entanto, desde a promulgação, esses critérios não estão sendo respeitados.
“Levando em consideração a lei de 1989, muitos agrotóxicos deveriam ser proibidos no Brasil. Acontece que a Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária], que faz a avaliação do ponto de vista da saúde humana, foi criada em 1999, ou seja, 10 anos depois da lei. Então, o que andamos pesquisando para o dossiê é que vários agrotóxicos que temos hoje registrados, por exemplo, o glifosato e o acefato têm características muito tóxicas e foram registrados muito antes da lei de 1989”, explica Friedrich.
A pesquisadora aponta que muitas dessas moléculas nunca passaram por um processo de revisão do registro. “Ou seja, ao longo de seis décadas eles foram sendo utilizados e várias evidências científicas foram reunidas para mostrar sua toxicidade. Só que o próprio sistema regulatório não dá conta de fazer uma revisão de todas essas substâncias”, conclui.
Liberação recorde
O Ministério da Agricultura liberou mais 39 agrotóxicos na terça-feira (13), segundo publicação no Diário Oficial da União. No total, neste ano já foram liberados 106 produtos químicos. Alan Tygel, membro da coordenação da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida, avalia os retrocessos durante os 10 anos de luta no movimento e atenta que o “lado mais atrasado do agronegócio” vem ganhando força no governo Bolsonaro, o que pode afetar diretamente o andamento do "PL do Veneno".
“Durante esses 10 anos a gente teve poucas proibições de agrotóxicos como a gente gostaria. E pautas como o fim das isenções fiscais para os agrotóxicos também não avançaram no país. Olhando para esse ponto de vista, a gente vê hoje o lado mais atrasado do agronegócio, com cargos de muita relevância no governo federal. Inclusive, após a mudança na presidência da Câmara e do Senado, a gente considera como um risco muito real e concreto a aprovação, ou pelo menos a colocação em pauta, do pacote do veneno, que é o projeto de lei que vai tentar desfigurar completamente a lei dos agrotóxicos”, analisa Tygel.
Karen Friedrich aponta que essas ações do governo e uma possível aprovação do "PL do Veneno" retrocedem ainda mais a perspectiva de proteção à saúde e ao ambiente. Para a pesquisadora, o país está se tornando um mau exemplo por aprovar produtos que outros países já proibiram.
“Analisando esses mais de mil produtos, são produtos antigos, são moléculas que outros países já proibiram, principalmente por conta de câncer, por conta de efeitos à saúde. E isso coloca o Brasil em um cenário muito preocupante” comenta a toxicologista.
Ela critica o fato de o Brasil estar absorvendo produtos que outros países não querem mais. “A verdade é que a gente está sendo um rejeito de resíduos tóxicos.”
Contaminação do meio ambiente
Outro importante impacto causado por agrotóxicos é a contaminação da fauna e da flora, além de águas superficiais e subterrâneas, como rios, lagos, córregos, aquíferos e lençóis freáticos. Dados de controle do Sistema de Informação de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano (Sisagua) apontam que os agrotóxicos foram detectados na água potável de 2,3 mil cidades entre 2014 a 2017. Ou seja, uma em cada quatro municípios brasileiros fornecem água contaminada para sua população. Na visão de Tygel, a pulverização aérea e terrestre pode alastrar porções tóxicas de venenos para comunidades ao redor das plantações.
“Não é só o avião, a pulverização também, se estiver ventando, ela também vai para longe. E esse agrotóxico vai ficar no ar e vai contaminar o solo, os animais, que também são os grandes afetados. E não nos espanta que, esses agrotóxicos que estão no solo vão parar na água em algum momento” explica.
Testes contraditórios
Na visão dos especialistas, ao contrário do que propaga o lobby do agronegócio, a agroecologia tem o potencial de aumentar a produtividade de alimentos de forma mais sustentável social e ambientalmente. O alimento de qualidade a baixo custo na mesa dos brasileiros é essencial, mas isso não deveria incluir riscos à saúde.
Em Santa Catarina, o Programa Alimento sem Risco (PASR), do Ministério Público Estadual, analisou mais de 25 tipos de vegetais em todas as regiões agrícolas do estado. Os resultados dos exames indicam que 65,5% das 3.930 amostras de vegetais continham resíduos de agrotóxicos e 20,2% (794) estavam fora da conformidade legal em decorrência do excesso desses produtos tóxicos ou por não terem o uso permitido.
Já o Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA) analisou 4.616 amostras de 14 alimentos de origem vegetal, que fazem parte da dieta da população brasileira. As amostras foram coletadas em estabelecimentos varejistas localizados em 77 municípios brasileiros (exceto os do estado do Paraná), entre agosto de 2017 e junho de 2018. Do total, 1.072 (23%) estavam acima do Limite Máximo de Resíduos (LMR). Friedrich entende que os testes de LMR são importantes, mas apontam que o seu critério deve ser revisto.
“O problema é anterior, como ela define esse critério do limite legal. Os testes partem, primeiro, de um conjunto de estudos toxicológicos, de estudos que são feitos em ratos de laboratório, onde determinado agrotóxico é testado. A questão é que a indústria é que apresenta esses resultados. Ou ela faz, ou encomenda de laboratórios que são pagos para isso”, explica.
Ela destaca que agrotóxico não deveria ser estudado de forma isolada, pois ficam de fora as análises sobre suas misturas. "Além disso, os próprios estudos em animais têm suas limitações. O trabalhador que recebe aquele agrotóxico por várias vias de entradas no corpo. Então, a toxicidade que se espera é muito maior do que aquele animal que recebeu só por via oral, por exemplo”, conclui.
Isenção de impostos
Apesar de causarem destruição ambiental e sobrecarregarem o Sistema Único de Saúde (SUS) com milhares de casos de intoxicações agudas e crônicas, os agrotóxicos possuem diversos incentivos fiscais no Brasil. Enquanto isso, o país deixa de arrecadar R$ 6,2 bilhões por ano, de acordo com estudo da Abrasco.
“Quando se fala que o agronegócio manteve o PIB [Produto Interno Bruto] positivo, nessa conta não está entrando toda essa carga de isenção que o setor tem. E muito menos a carga de danos e custos que eles promovem para o estado brasileiro. Custos para tratar pessoas adoecidas, toda a dificuldade de acesso à água limpa, à terra sem estar contaminadas. Ou seja, têm vários custos que estão embutidos nessa atividade que fazem parte desse pacote ideológico contra o meio ambiente e contra a vida”, desabafa a pesquisadora.
Ela aponta que, enquanto o agronegócio é beneficiado, a sociedade é prejudicada de diversas formas. "O ônus fica com a gente que come alimentos envenenados, bebe água contaminada, fica para as famílias que não tem terra para plantar, das comunidades e povos tradicionais que são expulsas de suas terras, por conta desse avanço do agronegócio, além da perda da biodiversidade que não tem como mensurar”, conclui.
PNARA e agroecologia
O dossiê também apresenta estudos científicos que embasam a Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (PNARA - PL 6670/16). O projeto de lei aguarda votação no plenário da Câmara e propõe medidas para a promoção da agroecologia e da produção orgânica no país. Para Tygel, a utilização de agrotóxicos não é a única maneira de se garantir uma boa colheita. A agroecologia é uma alternativa de produção que se destaca por incorporar relações sociais de produção, segurança alimentar e nutricional, qualidade de vida e sustentabilidade.
“O PNARA é o que a gente está vendo como a principal alternativa para ter, de fato, uma agricultura sustentável, voltada à resolução do problema da fome. A gente tem dois dilemas: uma agricultura que produz commodities, vai para exportação e cujo os ganhos estão concentrados nas mãos de poucos; e a gente tem um modelo agroecológico, de produção orgânica, que permite produzir uma grande quantidade e variedade de alimentos disponíveis para a população”, aponta a integrante da Abrasco.
Entre os caminhos para fortalecer as produções agroecológicas, o PNARA propõe a capacitação de agricultores para fazer a transição, incluindo a adaptação da propriedade que usa agrotóxicos para uma produção agroecológica, e o fortalecimento dos órgãos vigilantes.
“Uma das grandes vitórias que a gente tem como sociedade nesses dez anos de campanha é a replicação cada vez maior de experimentos desse novo modelo de fazer agricultura. E demonstramos que não há barreiras técnicas, não há barreiras científicas para sua execução”, explica Tygel.
Ele defende que a agroecologia também receba subsídios e incentivos técnicos e científicos, políticos e sociais para que seja cada vez mais disseminada. "Para que ela possa resultar nisso que a gente está lutando, que é a produção de alimentos saudáveis, a garantia que essas populações tenham seu território assegurado e que possam viver e se manter produzindo alimentos saudáveis para a sociedade.”