Escrito por: Andre Accarini

Cracolândia: caminho é ter políticas públicas de acolhimento, diz dirigente da CUT

Membros do CNDH estiveram em missão em São Paulo. “Cracolândia é problema de saúde pública e precisa de políticas públicas para que vidas sejam salvas”, diz Virginia Berriel, que representa a CUT no Conselho

Virginia Berriel

Jornais sensacionalistas e policialescos de fim de tarde na televisão tratam as imagens de uma conhecida região do centro velho de São Paulo, a cracolândia, como um local que precisa ser varrido daquele mapa e apontam como solução a ‘caça’ a traficantes e a internação compulsória das centenas de dependentes químicos que ali permanecem, o que, atualmente, é proibido por lei.

O uso da força pelo poder público, seja pela Polícia Militar de São Paulo, seja pela Guarda Civil Municipal (GCM), para dispersar a multidão é frequentemente colocado em prática. Recentemente o governador do estado, Tarcísio de Freitas (Republicanos), chegou a ensaiar uma remoção dos dependentes, realocando-os da Santa Ifigênia para um local no Bom Retiro, sobre a ponte Orestes Quércia.

As tentativas de ‘resolver’ o problema da cracolândia encontra respaldo em um discurso que vem ganhando força entre os moradores da região, de que o centro velho de SP, local histórico, ‘está morto’ por causa dos dependentes químicos. Mas todas essas investidas têm fracassado. Na prática, os depender químicos apanham da polícia, são presos, soltos, removidos de lugar, mas voltam ao local.

O que falta, segundo os membros do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), é boa vontade, humanidade e políticas públicas eficazes para reduzir os danos sofridos por essas pessoas.

A diretora executiva da CUT, Virginia Berriel, que representa a Central no Conselho, participou de uma missão do CNDH que teve início no dia 27 de agosto e percorreu locais na capital paulista como oficinas de costura para detectar a prática de trabalho análogo à escravidão e também foi ver de perto o sofrimento vivido por moradores de rua e dependentes químicos.

Para tanto, o grupo passou horas na cracolândia para conhecer de perto a realidade dos seres humanos que ali estão. O que sofrem, o que precisam e como protege-los e resgatá-los foi o foco da missão.

“Estivemos lá e ficamos estarrecidos com a forma que são tratadas as pessoas e com situação em si, da forma como o estado trata a cracolândia e as pessoas ali”, diz Virgínia.

A constatação, de acordo com ela, é que aquelas pessoas precisam de cuidados, de alimentação, água, principalmente. “São pessoas que por um infortúnio da vida foram parar ali e agora estão reféns do vício e vulneráveis em relação ao tratamento dado pelo poder público”, ela afirma.

Na últimas sexta-feira, um relatório preliminar já foi finalizado e apresentado. O documento incluiu além das missões do CNDH sobre denúncias de trabalho análogo à escravidão e sobre a população de rua de SP, um relato apontando violações graves de direitos humanos na operação Escudo, realizada pela Polícia Militar no Guarujá (Baixada Santista) após a morte de um polícias em julho deste ano.

“Fizemos audiências públicas sobre os temas relacionados à população de rua e do trabalho análogo à escravidão ouvimos as demandas dessas pessoas. O primeiro passo é elaborar um relatório as vezes preliminar, as vezes definitivo. A partir disso encaminhamos uma série de recomendações às autoridades públicas para que tome providências. E serve como um espaço vivo para que toda a sociedade civil que, a partir da atuação do poder público possa cobrar a resolução das demandas e conflitos”, disse o presidente do CNDH, André Carneiro, em entrevista ao Portal CUT

Quem são os dependentes

Por trás de cada rosto de cada dependente químico ali, há um drama real, uma dor, um trauma que levou a pessoas a se entregar ao vício. Virgínia Berriel, não apenas como membro do Conselho Nacional de Direitos Humanos, mas também como sindicalista, atenta às mazelas sociais do país, e como jornalista, em especial, conta que ali há todo tipo de pessoas, de todas as classes sociais, de diferentes níveis de formação, inclusive.

“Não podemos aceitar que o conceito sobre essas pessoas seja exclusivamente higienista e excludente. É preciso o olhar humano do poder público e da sociedade. Há muitos casos de pessoas que sofreram traumas, desilusões, revezes da vida e, infelizmente, se renderam ao vício. É uma fraqueza humana à qual todos nós estamos suscetíveis. É preciso empatia, se colocar no lugar de quem tem ou teve uma dor. É preciso imaginar que um dia alguma daquelas pessoas poderia ser um irmão, um filho, um amigo”, ela diz.

Por isso, ela reforça que políticas públicas de acolhimento e encaminhamento são fundamentais. É preciso, diz, “haver um trabalho profundo e honesto de assistência social para aquelas pessoas”.

Um exemplo de política pública já adotada em relação à cracolândia em São Paulo, mas descontinuada por governos posteriores foi o programa “De Braços Abertos”, idealizado em 2014 pela gestão do então prefeito e hoje ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT).

A iniciativa oferecia moradia, emprego, alimentação e tratamento a dependentes químicos. Iniciado em janeiro daquele ano, o programa começou atendendo 422 beneficiários (usuários) cadastrados. Mais de 120 pessoas começaram a fazer tratamento voluntário e dados da época, apontaram que o consumo de crack havia sido reduzido em média, de 50% a 70%.

Vitória pessoal - “Estou sorrindo à toa”, afirmou à época a Rede Brasil Atual o participante do programa Francisco de Oliveira, de 57 anos. Para o usuário de crack cujo vício já durava 20 anos, o De Braços Abertos salvou sua vida.

“Se eu não fosse isso, eu não aguentaria mais morar na rua do jeito que eu estava. Quando a gente é novo, não pensa. Mas na idade que eu estou, tudo pesa mais", declarou na ocasião.

Impacto positivo

Os efeitos do programa se deram também na redução violência na região. No primeiro semestre de 2013, quando ainda não existia o programa haviam sido registrados 19 furtos de veículos e 319 furtos gerais na região. No mesmo período de 2014, já com o programa em andamento, foram 10 furtos de veículos e 216 furtos de pessoas.

“É isso que precisa. Eles disseram isso nas nossas conversas”, diz Virginia Berriel, reforçando que ações higienistas e violentas não sanarão o problema. “Eles precisam das coisas mais básicas, disseram ‘quero água, um banheiro’. São pessoas que estão sendo tratadas como bichos”, relata.

O que vimos é de doer, porque estão em sofrimento. Não resolve internação à força, violência. A pessoa tem que ser encaminhada com dignidade. Tudo o que se faz à força não funciona- Virginia Berriel


Virginia conta ainda que durante as conversas que manteve com aquelas pessoas, ouviu história tristes de falta de expectativa de vida, de oportunidades. “Tem gente que está ali há 20 anos. É muito sofrimento e tanto o município como governo do estado têm que resolver. E isso se faz levando as pessoas para um abrigo, onde possam entra e sair, com arte, com cultura, com um programa de ressocialização digno que inclua valores pessoais. Eles querem isso, querem essa oportunidade”, pontua a dirigente.

Caso

Virginia se emocionou durante a entrevista ao contar sobre uma senhora de 70 anos, ali no meio dos usuários. Ao abordá-la, ela disse “Estou procurando meu filho”.

“São várias situações, várias realidades. É preciso saber, conhecer, sentir aquilo e ter um mínimo de humanidade. Tem que ter amor. Elas não são pessoas perigosas. São pessoas que sofrem.

Atuação

A visita dos membros do CNDH à cracolândia, com relatos, experiências e denúncias fará parte de um relatório, que deve ser finalizado em 60 dias. O documento traçará um panorama completo da situação denunciando causas e apontando medidas ao poder público para que se possa encaminhar uma solução para salvar as vidas daquelas pessoas.

Além da cracolândia, que também envolve a realidade das pessoas em situação de rua, o trabalho análogo à escravidão também será parte do relatório. A missão do CNDH visitou cerca de 150 oficinas de costura em São Paulo e constatou que há muitas trabalhadoras em especial bolivianas, peruanas e venezuelanas em condições degradantes de exploração de sua mão de obra.