Escrito por: Andre Accarini
Condições de trabalho cada vez mais precárias expõem a exploração selvagem do trabalho por empresas de tecnologia como iFood, Loggi e Rappi. De acordo com OIT, segmento aumentou cinco vezes na última década
O crescimento acelerado das plataformas digitais que utilizam mão de obra informal, sem direitos, acende um alerta sobre a degradação das condições de trabalho de milhares de pessoas que acabam, por causa da crise econômica e do aumento do desemprego, enxergando nesta atividade a única maneira de garantir um mínimo de renda para sobreviver.
De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), em todo o mundo, nos últimos dez anos, o número de plataformas digitais, em todos os setores, cresceu cinco vezes. Apesar de se concentrar ainda nos serviços de entrega, o trabalho por plataformas digitais vem ampliando a abrangência para outros setores e atividades, como educação, jurídico, serviços pessoais, logística e outros, sempre pagando baixos salários e impondo longas e exaustivas jornadas.
No Brasil, esse exército de trabalhadores sem carteira assinada e sem direito a proteção da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), vem sendo classificado como “empreendedores”. Na verdade, são motoristas, motoboys e entregadores de aplicativos sem direito a seguro-desemprego, aposentadoria, auxílio-doença ou acidente, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço ou abono salarial do PIS/Pasep.
Propagandeada pelo mercado e pelos próprios aplicativos, como Uber, iFood, Rappi, entre outros, como uma forma de trabalho independente, em que o trabalhador faz seu próprio horário e, ele mesmo, gerencia sua atividade, a profissão nada mais é do que uma forma de exploração que leva esses trabalhadores aos limites de carga de trabalho, sem segurança, com total ausência de direitos e proteção social.
Eles são cobrados pela rapidez na entrega, têm que atender aos padrões e regras dos aplicativos que, por sua vez, ignoram a realidade das ruas, ou seja, de como é realizar o trabalho. E se não conseguem cumprir as normas, são punidos com suspensão ou descadastramento do sistema.
O caminho para esses empreendimentos se constituírem no mercado brasileiro foi facilitado por causa do desmonte dos direitos que começou depois do golpe de 2016, que destituiu a presidenta Dilma Rousseff.
“A reforma Trabalhista fragilizou as formas de contratação, diminuiu o custo da demissão e tenta enfraquecer e até barrar a representação sindical”, afirma o secretário de Relações de Trabalho da CUT, Ari Aloraldo do Nascimento, citando apenas um exemplo de destruição de direitos após o golpe. A reforma Trabalhista, ressalta o secretário, foi aprovada pelo governo golpista de Michel Temer (MDB-SP).
Na avaliação dele, com a mão-de-obra barata, sem encargos sociais, as empresas de tecnologia, caso dos aplicativos, passaram a prosperar e explorar ainda mais os trabalhadores e trabalhadoras.
E, para além dos direitos, o controle da rotina de trabalho pelos aplicativos anula a autonomia dos trabalhadores e aumenta a produtividade – o lucro dessas empresas – já que a remuneração aos trabalhadores é irrisória, acrescenta a economista e pesquisadora do Centro de Estudos Sindicais e de Economia da Unicamp (Cesit/Unicamp), Marilane Teixeira.
“O trabalhador inicia a jornada e não pode interromper e voltar mais tarde. A empresa segue os passos pelo GPS. É como se fosse um capataz. Eles controlam metas, tempo de entrega e definem padrões de bonificação. São avaliados e sujeitos a punições e não podem contestar. É um controle é unilateral”, afirma a economista.
De acordo com a OIT, metade dos que trabalham virtualmente ganha menos de US$ 2 por hora. Além da baixa remuneração, os trabalhadores têm de fazer jornadas extensas tanto para conseguir uma renda que lhes compense o dia de trabalho, quanto para atender à demanda cada vez mais alta para este tipo de prestação de serviço.
Marilane Teixeira questiona ainda o desconhecimento da sociedade sobre as condições desses trabalhadores. “Esse trabalho tem se intensificado por causa da demanda crescente. Boa parte da população vem utilizando cada vez mais os aplicativos. Mas podemos questionar a legitimidade disso porque é confortável para quem pede, é um privilégio, mas essas pessoas não se dão conta do tipo de trabalho e das condições envolvidas nessa atividade”, ela diz.
Novas categorias, como é o caso desses trabalhadores, ainda não têm organização, o que dificulta a defesa e luta por direitos, inclusive por meio de negociações coletivas. “Ainda assim a atividade empresarial continua oferendo um risco que não deve ser repassado à classe trabalhadora. Por isso a CUT se posiciona contra esta lógica”, diz Ari Aloraldo.
E os riscos para esses trabalhadores são constantes. Thiago Manzoni, 34 anos, morador da Praia Grande (litoral de SP), relata a insegurança a que são expostos e a falta de proteção social, principalmente em casos de acidentes.
“Acontece todo dia. A gente pode cair, se machucar e ficar sem assistência. Se a gente estiver errado, o prejuízo é maior. Não tem jeito, tem que pagar. E se for um acidente com caminhão, por exemplo, a gente paga com a vida”, diz Thiago.
A rua não tá fácil e a realidade é que não tem como se prevenir. E não tem nada que proteja a gente. Caiu, bateu, problema é seu. É bem assim- Thiago ManzoniSe um trabalhador informal tem de se afastar do trabalho, quem arca com todos os custos e prejuízos por ficar sem renda, é o próprio trabalhador. Direito zero. A situação seria diferente em caso de trabalho com registro em carteira, em que a legislação garante a proteção social e os direitos.
As condições de trabalho, diz a pesquisadora Marilane Texieira, são predatórias e sem nenhum controle de segurança. E a realidade dos entregadores demonstra isso.
Thiago Manzoni afirma que os entregadores chegaram a se unir e reivindicaram ao menos medidas de proteção contra a Covid-19. Uma determinação do Ministério Público do Trabalho, então, obrigou as empresas a fornecer álcool em gela e máscaras. Nem isso a maioria queria garantir para os trabalhadores.
“A iFood começou a distribuir, mas outros aplicativos ainda não fizeram. A Loggi só se pronunciou, dizendo que ia distribuir Isso já tem 20 dias e até agora nada”, ele diz.
Além de não contarem com equipamentos de higiene e segurança contra a Covid-19, as empresas também não disponibilizam local adequado para que façam sua higiene. Na maioria das vezes são forçados a pedir aos estabelecimentos para usarem o banheiro, por exemplo. Marilane ainda cita que eles não têm condições adequadas (e nem tempo suficiente) para as refeições. Muitos se alimentam nas ruas, nas praças e até nas calçadas.
De acordo com a professora de Direito e Relações do Trabalho, doutoranda no CESIT/Unicamp, Paula Freitas, o que essas empresas vêm fazendo é se utilizar de um discurso para que a relação de trabalho dos entregadores, como é hoje, sem vínculo empregatício, seja considerada natural.
“Assim eles fogem das obrigações de responsabilidade social para com os trabalhadores. Declarar que a atividade é de intermediação e de tecnologia não significa, de fato, que é verdade”, diz a professora que também é pesquisadora no grupo Trabalho Digital da Rede de. Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista (REMIR) da Unicamp.
“A gente olha uma pessoa pegando seu veículo como instrumento de trabalho, utilizando um aplicativo que é um meio de produção sob gerenciamento de uma plataforma. É sobre ele que se faz a riqueza, da qual as plataformas se apropriam. Portanto, essa atividade vai se caracterizar como transporte e não como intermediação de tecnologia”, diz a professora.
A atuação sindical, representando e defendendo esses trabalhadores, de acordo com Paula, é fundamental. “Temos que olhar a questão da regulação da atividade no conjunto da ação das instituições – a ação do judiciário para efetivar a proteção aos trabalhadores e um debate que envolva a sociedade e a representação dos trabalhadores”, ela diz.
Cerca de 64 projetos sobre o tema já foram protocolados no Congresso Nacional, sendo que 27 deles tratam de uma regulamentação definitiva para a categoria. Em agosto do ano passado, a CUT realizou um seminário virtual que contou com mais de 100 participantes, incluindo sindicalistas, advogados trabalhistas, assessores sindicais e parlamentares para discutir os direitos desses trabalhadores.
O objetivo foi discutir a regulamentação das empresas e do trabalho em plataformas digitais, em face da tramitação das proposições sobre o tema no Congresso e dos conflitos tanto no Brasil como no exterior sobre esse tipo de relação de trabalho. O seminário subsidiou o movimento sindical na articulação com parlamentares para defender a categoria.
Ainda assim, de acordo com Paula Freitas, o ideal seria seguir a legislação já existente. “Já temos a faca e o queijo na mão, temos a Constituição, temos a CLT e instituições públicas para efetivar a aplicação dessas leis”, ela diz.
Agora, ela conclui, é preciso conscientizar os próprios trabalhadores para que pressionem as instituições públicas e sobre a força que a CLT “ainda pode ter apesar do discurso das plataformas e discursos neoliberais que querem romper com toda e qualquer ferramenta de proteção social”.
*Edição: Marize Muniz