Escrito por: Vitor Nuzzi, da RBA
Preso há um ano, ex-presidente foi indicado pela ação de seu governo no combate à fome. Nos anos 1970, ditadura brasileira fez campanha para evitar que Dom Helder Câmara ganhasse
Em 1980, ao subir ao púlpito para o discurso de aceitação do Prêmio Nobel da Paz, o argentino Adolfo Pérez Esquivel saudou de início seus "companheiros de luta na América Latina" e as "queridas Mães da Praça de Maio". Agradeceu em nome dos "mais pobres e pequenos", "meus irmãos indígenas, os camponeses, os operários, os jovens, os milhares de religiosos e homens de boa vontade que, renunciando a seus privilégios, compartilham a vida e o caminho dos pobres e lutam por construir uma nova sociedade". Em discurso na Noruega, lembrou vir de um continente "que vive entre a angústia e a esperança". Em seu país, como em outros da região, vigorava uma ditadura.
Três anos antes, em agosto de 1977, Esquivel havia sido detido em Buenos Aires. A ditadura argentina havia começado no ano anterior. Ele foi preso e torturado. Sem processo judicial, permaneceu na prisão durante 14 meses, e em "liberdade vigiada" outros 14. Em entrevista recente ao jornal espanhol Público, lembrou daquele período ao se referir ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que indicou para receber o mesmo prêmio neste ano. O resultado deverá ser conhecido em outubro.
"No meu caso, eu estava na prisão quando a campanha começou em favor da minha nomeação como Prêmio Nobel da Paz em 1980. E a candidatura não ajudou mais a minha libertação. Já o Nobel...", disse Esquivel, que apresentou a proposta em outubro do ano passado, com mais de 400 mil assinaturas de personalidades de todo o mundo. "Em outubro a concessão será conhecida, mas qual meu sentimento? Espero que concedam o prêmio a Lula porque seria justo e porque fortaleceria as instituições democráticas, profundamente prejudicadas no Brasil."
O comitê do Nobel da Paz informa que há 301 candidatos ao prêmio deste ano. São 223 pessoas e 78 organizações. O recorde de indicações é de 2016: 376. Os nomes não são divulgados – segundo o comitê, isso só pode acontecer depois de 50 anos. Criado em 1901 – os primeiros vencedores foram o suíço Henry Dunant e o francês Frédéric Passy –, o Nobel reúne algumas polêmicas, uma das principais envolvendo um brasileiro, que sofreu boicote de seu próprio governo: Dom Helder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife, indicado quatro vezes nos anos 1970, durante a ditadura.
A jornalista brasileira Leneide Duarte-Plon, residente em Paris, perguntou ao ex-chanceler Celso Amorim sobre uma possível semelhança entre as duas situações. "No caso de Dom Helder, eram outros tempos. O governo atual não goza de grande prestígio internacional”, respondeu, em entrevista para a revista CartaCapital em fevereiro. "O mais provável é que os opositores tentem inventar outro candidato brasileiro ou latino-americano, que não ganhará, mas poderá enfraquecer a candidatura de Lula. Parece que já sugeriram os bombeiros que trabalharam em Brumadinho..."
Se por um lado o Nobel da Paz já foi concedido a figuras como Martin Luther King Jr. (1964), Madre Teresa (1979) e Nelson Mandela (1993), por outro a premiação de 1973 envolveu o premiê norte-americano Henry Kissinger e o vietnamita Lê Đức Thọ, por causa de um cessar-fogo entre o Vietnã do Norte e os Estados Unidos, após anos de guerra sangrenta.
Para os críticos, Kissinger era o oposto de um pacifista. Já Tho recusou o prêmio, por considerar que a paz não estava consolidada. Dois dos cinco membros do Nobel renunciaram.
Houve controvérsia também em 1994, quando os premiados foram Yasser Arafat, Shimon Peres e Yitzhak Rabin, pelos esforços em prol da paz entre Israel e Palestina. Um integrante do Nobel renunciou
A campanha pró-Lula foi lançada menos de uma semana depois da prisão do ex-presidente, em 7 de abril do ano passado. Esquivel, que havia visitado o ex-presidente pouco tempo antes, destacou os avanços do governo Lula no combate à miséria no Brasil e a influência mundial do programa Fome Zero. A iniciativa foi abraçada por personalidades como a escritora Angela Davis, o ator Danny Glover e o filósofo Noam Chomsky, entre outros.
Em 2015, a Comissão Estadual da Memória e da Verdade Dom Helder Câmara, criada pelo governo de Pernambuco, dedicou uma edição especial ao episódio de perseguição ao bispo, conhecido por denunciar no exterior as atrocidades da ditadura. Por sua atividade em defesa dos direitos humanos, foi indicado para receber o Nobel, na primeira metade dos anos 1970. Levantamento da comissão no Itamaraty conseguiu comprovar que a ditadura atuou contra o religioso.
"Na época da resistência democrática, já existia uma série de informações levantadas por parlamentares e movimentos sociais sobre um dossiê contra Dom Helder", lembra o professor Manoel Severino Moraes de Almeida, da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). "Nas buscas da Comissão da Verdade, estivemos no Itamaraty. Diziam: 'Acho muito difícil que alguém tenha deixado isso por escrito'. O fato é que essa documentação foi preservada, e num prazo de seis meses recebemos a boa notícia de que o material estava disponível, e o Itamaraty nos entregou essa documentação", acrescenta, destacando a parceria com o Instituto Dom Helder Câmara na digitalização do acervo do religioso.
Nomeado arcebispo poucos dias antes do golpe de 1964, Dom Helder foi indicado quatro vezes ao Nobel da Paz, de 1970 a 1973. Durante todo esse período, o Brasil atuou deliberadamente para "impedir que houvesse um reconhecimento", lembra o professor. Ele se tornou alvo da ditadura por denunciar os crimes cometidos por agentes do Estado e por seu papel em defesa dos direitos humanos.
"Dom Helder entendia de forma muito clara a defesa da dignidade humana. Ele é protagonista de uma série de levantamentos de denúncias. Torturas, prisões arbitrárias. Ele passa a ser uma voz desse movimento de resistência fora do Brasil. E se torna uma pessoa extremamente conhecida internacionalmente", observa Almeida. "A ação de Dom Helder está totalmente ligada ao Concílio Vaticano II", acrescenta, citando o evento realizado de 1962 a 1965 que representou um período de renovação da Igreja Católica.
Por isso, teve menções a seu nome vetadas na imprensa e foi sistematicamente perseguido. Sofreu um severo golpe em 1969, quando o padre Antônio Henrique, seu braço direito, foi torturado e morto – o corpo foi encontrado na manhã de 27 de maio em um terreno baldio. Cinco anos atrás, a Comissão da Verdade pernambucana concluiu que de fato se tratou de crime político, em uma tentativa de intimidar Dom Helder.
documento da ditadura
A campanha da diplomacia brasileira na Europa incluiu um dossiê e a acusação de que Dom Helder havia sido integralista na juventude – algo que ele nunca negou, observa o pesquisador e professor da Unicap. O embaixador Jayme de Souza Gomes falava abertamente sobre o "desconforto" que a vitória do arcebispo "esquerdizante" causaria ao governo. A representação chegou a convocar empresários de companhias de origem escandinava no Brasil para ameaçar de impedir a remessa de lucros para as matrizes.
"Seria uma premiação aos subversivos", diz o professor, citando um dos argumentos da ditadura em sua ação "coordenada e planejada" para barrar a premiação, em uma campanha que ele considera cruel. "A Igreja, enquanto instituição, apoiou Dom Helder. Mas não interfere. É o Estado brasileiro intervindo contra um nacional."
Em 1970, quem recebe o Nobel é engenheiro agrônomo norte-americano Norman Borlaug. "Quem ganhou, ganhou. Mas de fato o Estado brasileiro fez essa campanha contra um nacional, e provavelmente seria o primeiro brasileiro a ganhar." Almeida conta que o próprio Dom Helder – que morreu em 1999, aos 90 anos – pediu para não ser mais indicado. Em 1971, o vencedor foi o chanceler alemão Willy Brandt. No ano seguinte não houve premiação – o que é visto como um possível sinal –, e em 1973 houve a polêmica envolvendo o nome de Kissinger.
Em 2017, Dom Helder Câmara foi declarado Patrono Brasileiro dos Direitos Humanos, pela Lei 13.581. O arcebispo chegou a ganhar um prêmio alternativo, usando o dinheiro para terras que pertenciam a engenhos, doadas a colonos que ainda estão lá. "Aqueles que lutam por ideais e justiça sofrem muito em vida, mas figuram como referência. São pessoas que mostraram sua coragem e sua dignidade diante de tanta indignidade."
Quase 651 mil pessoas incluíram seus nomes no abaixo-assinado pró-Lula. "Como é sabido, a paz não é apenas a ausência de guerra, ou a morte de uma ou de muitas pessoas, a paz é também dar esperança ao futuro do povo, especialmente aos setores mais vulneráveis, vítimas da "cultura de descarte", da qual fala o Papa Francisco. Promover a paz é incluir e proteger aqueles que este sistema econômico condena à morte e à violência múltipla", diz a petição encaminhada ao comitê norueguês, assinada por Esquivel, que em abril do ano passado, ao lado do escritor Leonardo Boff, foi impedido de visitar o ex-presidente. A imagem de Boff sentado à frente da Superintendência da Polícia Federal em Curitiba tornou-se famosa. Posteriormente, eles conseguiram entrar para visitar Lula.