Escrito por: Redação CUTTiago Pereira, da RBA
Painel promovido pelo FSM discutiu estratégias em busca da democratização da economia, num cenário de crise internacional que combina fome com aquecimento global
A luta contra o neoliberalismo ganhou novas formas desde a primeira edição do Fórum Social Mundial (FSM), em 2001. Vinte anos depois, a crise climática global escancara a necessidade de mudanças no sistema produtivo. Baseado no livre comércio sob comando das grandes corporações internacionais, esse sistema vem aumentando as desigualdades sociais, a fome e a devastação do meio ambiente. A pandemia do novo coronavírus torna ainda mais agudo todos esses processos.
Para dar respostas a esses desafios, lideranças do movimentos sociais e especialistas de diversas partes do planeta participaram nesta segunda-feira (25) de um painel virtual promovido pelo FSM que discutiu estratégias em busca da democratização da economia.
Reforma agrária, justiça fiscal, suspensão do pagamento das dívidas e mudança do papel do estado foram algumas das saídas propostas. Uma economia feminista, baseada no cuidado, além de outras formas solidárias de organização e produção também foram apresentadas como alternativas.
Para o coordenador do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), João Paulo Rodrigues, a pandemia agudizou os efeitos da crise financeira internacional que começou em 2008. Desde então, o capital financeiro internacional busca estratégias para “cobrir os rombos que eles mesmos criaram”. Em diversos países, da Espanha à Grécia, passando pelo Brasil, isso tem se dado na forma da retirada de direitos sociais. “Estamos vendo uma América Latina muito mais empobrecida nos dias de hoje do que há cinco ou seis anos atrás, fruto também dessa crise”, afirmou.
Além disso, a implementação das novas tecnologias no mundo do trabalho tem aprofundado o processo de precarização. Com a chamada “uberização”, a jornada de trabalho de oito horas diárias tem sido abandonada paulatinamente. “Com esse mundo do home office, não vamos ter apenas as 8 horas de trabalho. Vamos passar para dez, 15, 17 horas trabalhadas, sem que os trabalhadores tenham direito a essa mais-valia produzida”.
No campo, o mesmo se dá com a intensificação do uso de máquinas e tratores, combinados com a aplicação de agrotóxicos. Com a intensificação da produção de commodities em larga escala, como o milho e a soja, a tendência, segundo João Paulo, é de redução das áreas destinadas a produção de alimentos, como o arroz e o feijão.
Segundo ele, esse modelo de produção associado ao agravamento das condições climáticas deve produzir uma “combinação devastadora”. “Há um aumento da fome muito grande. A pandemia deixou mais evidenciado. No caso brasileiro, são aproximadamente 60 milhões rejeitados por esse modelo na fila do auxílio emergencial. (…) Não há possibilidade de haver, nos próximos cinco anos, uma baixa no preço do alimento”, afirmou.
Para a colombiana Rosa Emilia Salamanca, diretora-executiva da Corporação de Investigação e Ação Social e Econômica (CIASE), a crise atual está relacionada ao “andocrentrismo” que predomina no funcionamento da economia. Essa estrutural, que coloca o homem no centro da produção, tem provocado a exclusão das mulheres, além da devastação ambiental.
Segundo ela, diversas correntes do feminismo na economia sugerem um outro modelo de integração, mais igualitário. A “economia do cuidado” é um dos “centros vitais” dessa mudança. “Não somente o cuidado diário com a própria comunidade, vital para reconstrução da economia, como também o cuidado com a natureza”, ressaltou.
Outra aposta, segundo ela, deve ser a “justiça fiscal”. Não apenas para que os tributos sejam cobrados de maneira mais equânime, mas também que sejam aplicados em políticas transformadoras. Dentre elas, Rosa Emilia citou a necessidade de implementação de uma renda básica. É uma ferramenta essencial, segundo ela, para conter a “exacerbação da violência econômica” contra as mulheres em toda a América Latina, quadro agravado pela pandemia.
Para a economista Maria Lúcia Fattorelli, da Auditoria Cidadã da Dívida, “outro mundo é possível”. Mas, para tanto, é preciso combater o modelo tributário injusto em vigor que ela vem chamando de “sistema da dívida”. São mecanismos criados pelas autoridades monetárias nos diversos países que desviam para o sistema financeiro os recursos arrecadados. “A dívida pública deveria ser um instrumento para possibilitar investimentos públicos. Mas não funciona assim. Esse instrumento foi cooptado”, declarou.
Esse esquema é comandado, segundo ela, por instituições como o Banco de Compensações Internacionais (conhecido pela sigla BIS – Bank for International Settlements) e pelo Fundo Monetário Internacional. Funciona de modo equivalente seja na Europa ou na América Latina. Ela citou que, no Equador, por exemplo, após uma completa auditoria, o então presidente Rafael Corrêa anulou cerca de 70% da dívida pública, considerada “fraudulenta”. O mesmo padrão se repete nos demais países da região.
No Brasil, ela afirmou que esse quadro tem se agravado com o processo que ela chamou de “securitização da dívida“. Com ele, “os fundos públicos desaparecem durante o caminho para a rede bancária, impedindo investimentos sociais necessários”. Ela diz que os movimentos sociais em todo o mundo precisam se interessar pelo tema. “São vários mecanismos que se repetem em diversas partes do mundo. Por isso necessitamos dar as mãos e lutar de maneira conjunta. Só assim, outro mundo possível, urgente e necessário terá lugar”.
O presidente do Comitê pela Anulação da Dívida do Terceiro Mundo, Eric Toussaint, também chamou a atenção para a explosão do nível de endividamento em todo mundo, por conta da pandemia. Mas ele alertou que os movimentos progressistas não devem comemorar esse fato. De acordo com ele, mais do que um reforço da capacidade do estado, o aumento da dívida reflete a indisposição para aumentar a tributação sobre os mais ricos.
Além disso, passado o período mais agudo da pandemia, o crescimento da dívida pública voltará a ser utilizado como pretexto para a aplicação de medidas de austeridade fiscal. Por outro lado, ele defendeu não apenas a suspensão do pagamento da dívida externa dos países em desenvolvimento, bem como o não pagamento de dívidas privadas, como no caso do crédito estudantil abusivo a estudantes em países como Estados Unidos e Chile.
A economista Luciana Ghiotto, integrante da Associação por uma Taxa às Transações Financeiras e pela Ação Cidadã (Atttac Argentina) afirmou que as corporações transnacionais lutam hoje para impor tratados de cooperação internacional que limitam os poderes de regulação dos estados nacionais. Trata-se, segundo ela, de um aprofundamento dos acordos de livre comércio e de livre circulação de capital. Todos esses tem sido “fatais” para os povos dos países em desenvolvimento, em especial na América Latina. Ela defendeu que esses acordos também precisam ser auditados e combatidos.
Já a pesquisadora de Justiça e Desenvolvimento Econômico da Universidade de Nova York (NYCU), Jéssica Gordon, traçou uma trajetória dos mecanismos de solidariedade econômica criados pela comunidade negra nos Estados Unidos, desde a escravidão até a década de 1960, quando os negros nos Estados Unidos lutavam por direitos civis.
Por outro lado, o professor da Lakhwinder Singh, da Universidade de Punjab, no Paquistão, destacou a luta dos agricultores indianos contra a aplicação da Nova Lei de Agricultura, que vai aumentar ainda mais os poderes das megacorporações agrícolas. Com essa nova legislação, essas empresas terão maior controle sobre a terra, além de poder ditar os preços dos alimentos. Pelo menos 120 produtores rurais foram mortos em protestos contra essa nova legislação.