De olho no lucro, universidades demitem em massa professores e lotam salas virtuais
Mais de 1.800 professores de SP foram demitidos durante a pandemia. Além de desemprego e precarização do trabalho, EAD é apontado como responsável por baixa qualidade de ensino superior
Publicado: 28 Setembro, 2020 - 08h30 | Última modificação: 28 Setembro, 2020 - 15h27
Escrito por: Andre Accarini
Professores pedindo socorro, alunos com dificuldades para acompanhar as disciplinas e universidades particulares lucrando durante a pandemia do novo coronavírus. Este é o cenário atual do ensino superior no Brasil. A demissão em massa de docentes e as dificuldades técnicas do ensino online são as principais causas desta realidade.
De acordo com um levantamento realizado pela Federação dos Professores do Estado de São Paulo (Fepesp), somente em quatro instituições que atuam no estado (FMU/Fiam-Faam, Anhembi-Morumbi, Sumaré e Unip), já foram demitidos mais de 1.800 profissionais desde o início da pandemia.
O motivo alegado pelas empresas para as demissões é o de que houve grande evasão de alunos e inadimplência no período. O presidente da Fespesp, Celso Napolitano, questiona o argumento. Segundo ele, os ambientes virtuais de aulas, no ensino à distância (EAD), estão sobrecarregados de alunos, que se mantiveram nos cursos por causa da possiblidade do EAD e mesmo assim as instituições demitiram professores.
“Há denúncias de aulas on-line com até 400 estudantes, simultaneamente”, ele diz.
Professores relatam que, nas instituições onde trabalham a situação, de fato, não condiz com os argumentos apresentados. Uma das professoras da Universidade Cruzeiro do Sul contou ao Portal da CUT que o número de alunos cresceu mesmo após o início da pandemia do novo coronavírus e o grupo já até inaugurou um novo polo, na cidade de Guarulhos. Já os professores do grupo tiveram redução de até 60% nos salários.
O resultado desse cenário, na prática, é a precarização tanto do ensino, que tem sua qualidade colocada em dúvida, como das condições de trabalho dos professores que ainda estão empregados.
“Durante a pandemia, os professores foram transferidos para o ensino remoto e conseguiram dar conta do trabalho. Refizeram todo o planejamento, reorganizaram suas vidas e suas casas para utilizá-las como ambientes de aulas. E por causa desse trabalho houve menor evasão e inadimplência”, pontua Celso Napolitano.
Para os profissionais que continuaram contratados, além da sobrecarga de trabalho, as instituições impuseram redução na carga horária com a redução de salários. Desta forma os professores, cuja remuneração é ‘hora/aula’, sentiram um impacto financeiro grande e muitos estão com severas dificuldades de se manter, com contas a pagar e enfrentando necessidades.
Demitir os antigos e contratar professores com salários mais baixos e rotatividade alta são outros problemas da categoria. O grupo Laureate, ao comprar as faculdades FMU e Anhembi-Morumbi, decidiu demitir, a médio prazo, todos os professores mais antigos, substituindo-os por profissionais com salários menores.
Celso Napolitano lembra que, por causa da reforma Trabalhista (lei 13.467/2017), não há uma obrigação de uma remuneração de mesmo valor para duas pessoas diferentes que exerçam a mesma função. “Por isso, a estimativa é que um valor que pode se tornar padrão é cerca de R$ 50,00 por hora/aula, não importando, inclusive, qual a formação desse professor, ou seja, se ele tem pós-graduação, doutorado, mestrado ou outras qualificações”, diz.
Com salário barato e a possiblidade de encher uma sala com muitos alunos para um mesmo professor, a carga de trabalho se intensifica.
“Eles têm uma carga de trabalho excessiva e são mal remunerados. Recebem por aula dada e não pelo trabalho de preparação, qualificação e atualização que executam fora dessa aula”. Celso Napolitano ainda relata que professores, com remuneração reduzida, têm que dar aula em várias instituições para conseguirem dar conta de seus compromissos.
“Além do desgaste físico, há o desgaste mental”, pontua o presidente da Fepesp, referindo-se aos danos causados à saúde dos profissionais.
Há casos de professores com depressão, ansiedade e outros sintomas causados pela pressão excessiva, a cobrança de trabalho. “Com esse formato de EAD, o professor perde sua essência, não consegue preparar a aula, de maneira humanizada. É tudo muito subjetivo e isso causa uma frustração muito grande nos profissionais, que têm amor à educação”, diz uma professora da Universidade Cruzeiro do Sul.
Aulas lotadas e qualidade de ensino
Poucos professores têm que atender um número cada vez maior de alunos no sistema EAD. Além de ser causa principal da sobrecarga de trabalho, salas virtuais lotadas também prejudicam os alunos. Não são raras as situações em que uma mesma aula é ministrada para alunos de semestres e até cursos diferentes.
Celso Napolitano afirma que esses alunos têm necessidades e pré-requisitos diferentes para estarem em uma mesma aula e isso coloca a qualidade do ensino em dúvida.
Uma estudante do curso de Gestão de Marcas, da faculdade Anhembi-Morumbi, que prefere não se identificar, também reclama das dificuldades técnicas apresentadas pelo sistema da faculdade e do número excessivo de alunos em uma mesma sala de aula virtual.
“Existe um fórum de discussão em que a gente vê tudo o que outros alunos perguntam e o tutor responde. Mas é difícil achar as informações lá. O grupo de WhatsApp também lotou e não consigo entrar, ou seja, deve ter mais de 260 alunos esse curso”.
Ela ainda diz por causa dessas e outras dificuldades como ter que correr atrás da informação, entender o sistema, o EAD é muito diferente do ensino presencial. “A gente se sente sozinho mesmo e nem sempre dá conta de aprender tudo. O ensino presencial oferece um aproveitamento muito maior porque o professor está lá e acaba avaliando o aluno na hora”, diz.
Na avaliação do presidente da Fepesp, as universidades enxergaram no EAD uma forma de lucrar mais. “Gostaram desse ambiente virtual e estão vendo a oportunidade de colocar mais alunos nas salas e com uma redução brutal de custos”, ele diz, se referindo à demissão de professores.
Um exemplo é a faculdade Nove de Julho, onde também houve demissões de professores. Um dos estudantes do curso de medicina, conta que dois docentes foram demitidos e uma sala foi extinta. “Antes eram quatro salas, agora são três, com um número maior de alunos e sem esses dois professores”, ele diz.
Celso Napolitano diz ainda que esse quadro pode piorar, já que as faculdades estudam diminuir ainda mais o número de professores on-line e substituindo-os por aulas gravadas.
É um verdadeiro estelionato com os alunos que pagam para terem aulas presenciais
Alvaro Henrique/Sec. Educação
Ele lembra ainda que a qualidade de ensino é a última preocupação das instituições, que são empresas de capital aberto, com ações na bolsa e a qualidade de ensino e, portanto, visam lucro.
“Essas instituições geralmente comandadas por grandes grupos mercantis e fundos de investimento ou por fundos estrangeiros não têm compromisso com qualidade e formação de profissionais de qualidade. O único objetivo é a lucratividade e a remuneração dos investidores”, ele diz.
Mudar é preciso
A Fepesp e sindicatos da categoria estão se articulando com movimentos estudantis para denunciar o estado precário do ensino superior nessas instituições.
Ainda que a estratégia adotada por elas tenha amparo da Lei e aval de órgãos de Estado como Ministério da Educação (MEC) e Conselho Nacional de Educação (CNE), as entidades pretendem agir até mesmo no campo político, por meio de parlamentares, criando condições de barrar a precarização do trabalho e do ensino.
Tendência?
O crescimento do ensino EAD nas universidades, segundo Celso Napolitano tem a “complacência, cumplicidade e conivência” do MEC e do CNE.
“No fim do ano passado eles estabeleceram uma norma que permite um total de 40% das aulas no formato EAD e o restante, de 60%, presencial e sem nenhum controle desses órgãos, que deveriam zelar pelo ensino”, ele diz.
Essas ações das instituições podem ser legais, do ponto de vista da legislação, mas jamais serão morais
Assim como para o teletrabalho, ainda não há uma regulamentação pra a categoria no que diz respeito aos direitos dos professores que trabalham com o EAD.
Enquanto isso, professores reclamam e lamentam que o lucro das instituições venha da exploração de trabalhadores da educação que ganham salários baixíssimos.
A professora que deu seu depoimento ao Portal CUT, que preferiu não se identificar temendo retaliações da instituição onde trabalha diz também que “o sonho do brasileiro é mudar de vida e é triste ver que essas instituições se aproveitam desse sonho, explorando esses brasileiros economicamente”.