Escrito por: Cláudia Motta, da RBA
Alerta é do Instituto Maria da Penha. Dados do Ministério da Saúde indicam que mortes de mulheres a tiros, dentro de suas casas, são quase o triplo das registradas para homens
A farmacêutica Maria da Penha ficou paraplégica em 1983 depois de levar um tiro de espingarda que atingiu sua coluna. Seria o penúltimo episódio de uma série extensa de agressões por parte do marido e pai de suas três filhas. Ela foi vítima, ainda, de uma tentativa de eletrocução durante o banho. E poderia ter se tornado um número, uma estatística, das mortes decorrentes de violência doméstica.
Levantamento feito pelo jornal O Estado de S. Paulo, com base em dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde (no portal Datasus), aponta que é quase três vezes maior o número de mulheres mortas a tiros, dentro de casa, em comparação ao sexo masculino. Dos 46.881 homens vitimados por armas de fogo em 2017, último dado disponível no sistema, 10,6% morreram dentro de casa. No caso delas, foram 2.796 mortes e 25% em seus domicílios.
Maria da Penha, no entanto, sobreviveu e virou um símbolo. Mais que isso, sua história e sua luta resultaram em uma das mais avançadas legislações do mundo de combate à violência contra a mulher. Agora, vê com "muita preocupação" o decreto do presidente Jair Bolsonaro, que libera a posse de armas (até quatro por endereço) nas residências brasileiras.
"Sabemos que a maioria dos assassinatos de mulheres ocorre dentro de casa", confirma Conceição de Maria, superintendente-geral do Instituto Maria da Penha, que ajudou a fundar em 2009. "Com o homem agressor em posse de uma arma, a ameaça pode ser mais grave e se tornar um feminicídio."
Conceição conta que uma pesquisa realizada em parceria com a Universidade Federal do Ceará, entre 2016 e 2017, com 10 mil mulheres nas nove capitais da região Nordeste, dá conta de que três em cada 10 já passaram por pelo menos uma situação de violência doméstica na vida. "O que será desses lares com uma arma de fogo", questiona.
Medo de denunciar pode ser maior
O instituto não atende diretamente as mulheres em risco, mas trabalha com projetos pedagógicos educacionais com o objetivo de prevenção da violência doméstica, capacitação em áreas de vulnerabilidade social, nas universidades, nas escolas.
"A liberação da posse deve atrapalhar esse trabalho e dificultar a mulher a romper com o ciclo da violência", lamenta Conceição. "Ela vai se sentir mais fragilizada, com receio de retaliação do parceiro. Sabendo que existe uma arma de fogo pensará mais como será a estratégia, vai ter mais medo."
Um medo já comum às mulheres, agora agravado pela possível letalidade da violência. "Sabemos que a mulher não denuncia na primeira agressão. Em geral, ela suporta aproximadamente oito anos de relação abusiva antes de denunciar. E por vários motivos: medo de retaliação, de não conseguir criar os filhos sozinhas, vergonha, ou por acreditar que o parceiro voltará a ser o que era antes da agressão", explica.
Para ela, muitas ainda não entendem que vivem violência doméstica e que isso é passível de punição pela Lei Maria da Penha. "Daí a importância dos diferentes canais de comunicação: hoje a informação salva vidas", avalia.
O instituto não teve tempo de agir em relação à liberação da posse de armas. Mas, reconhece Conceição, deverão pensar como será a abordagem nesse sentido, já que todo o trabalho da ONG foi feito no período de vigência do Estatuto do Desarmamento, de 2003. "A arma vai, cada vez mais, atemorizar a mulher."
Segundo o Mapa da Violência, de 2016, "a estratégia do desarmamento, em seu primeiro ano de vigência (2004), não só anulou a tendência de crescimento anual de 7,2% pré-existente, mas também originou uma forte queda de 8,2% no número de óbitos registrados em 2003, e devido a isso, é possível sustentar que o impacto do desarmamento foi uma queda de 15,4% no número de mortes por armas de fogo no País".
Na próxima semana o instituto divulgará uma nota pública. "Estamos de prontidão. Não temos uma contradição voluntária, mas estamos atentos", afirma, explicando que ainda não houve nenhum contato com o novo governo, nem com a Secretária de Política para as Mulheres. "Não que a gente não queira, mas ainda está cedo, as coisas não estão formalizadas", diz Conceição. "Sempre tivemos muito boa relação om o governo federal e a gente espera que não seja incompatível dessa vez, não tornem o diálogo incompatível."
E se ele estivesse armado?
Tão logo foi anunciado o decreto de Bolsonaro, as redes sociais foram tomadas por relatos de medo, lembranças trágicas e situações que poderiam ter acabado em morte caso o agressor portasse uma arma de fogo.
A hashtag #SeEleEstivesseArmado manteve-se entre os assuntos mais comentados, como parte de uma campanha contra a medida. "Meu pai era alcoólatra e ficava agressivo, eu cresci e não ficava mais quieta, batia de frente, respondia os insultos dele. Um dia ele foi pra cima de mim com um facão, no outro ele me enforcou. Se meu pai bêbado tivesse uma arma, eu não estaria mais aqui", conta uma internauta.
"Quando falei para um ex-namorado que não queria mais porque meu lance era meninas ele enlouqueceu. Me perseguiu, me agrediu num bar, me jogou de uma escada me ameaçando de morte (B.O. registrado e tudo). #SeEleEstivesseArmado eu não estaria aqui tweetando essa história", publicou outra.
"Cresci em um ambiente violento, vendo meu pai, um típico cidadão de bem, agredir minha mãe. Quando se separaram, as agressões foram direcionadas a mim. Um dia, ele disse que acabaria comigo e minhas irmãs se eu ousasse denunciá-lo. #SeEleEstivesseArmado, eu não estaria aqui hoje."