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Depressão e suicídio a serviço do capitalismo

Estudo analítico feito por especialistas da Universidade de São Paulo (USP) mostra que cada vez mais o adoecimento mental dos trabalhadores tem servido para gerar lucros para o sistema econômico capitalista

Publicado: 25 Julho, 2019 - 15h58 | Última modificação: 26 Julho, 2019 - 10h45

Escrito por: Andre Accarini

Roberto Parizotti
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A causa de quase um terço, 30,67%, dos casos de afastamento no trabalho e pagamentos de auxílio-doença é transtorno mental provocado pelo ambiente de trabalho. Os dados são de um levantamento feito em 2017 pelo Ministério da Previdência.

A depressão, tratada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como o ‘mal do século’, além do stress e a ansiedade são algumas dessas doenças que estão afetando trabalhadores e trabalhadoras e podem levar ao suicídio.

Esses e outros transtornos mentais são resultados de um processo de exploração em que o trabalhador é submetido ao seu limite, a fim de atender aos interesses das corporações. E quando o trabalhador não atende, é substituído, o que hoje se chama de rotatividade, concluiu Estudo do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da Universidade de São Paulo – USP - (Latesfip).

“Os transtornos mentais são ‘produzidos’ pelo sistema para atender a interesses do capitalismo, com base em pesquisas não confiáveis e divulgações por meio da parceria entre indústria farmacêutica e mídia”, afirma o psicanalista Christian Dunker,  professor da USP.  

Dessa forma, não somente trabalhadores e trabalhadoras como a sociedade num geral, são induzidos ao stress como forma de ‘extração de produtividade’, explica.

De acordo com o professor, o neoliberalismo descobriu que o sofrimento pode ser gerenciado e capitalizado para fazer o trabalhador aumentar a produtividade. E essa descoberta é antiga. Ocorreu na década de 1970, quando as telefonistas foram a uma experiência capitalista que consistia na sobrecarga de trabalho para ver onde conseguiram chegar. Com medo de perder o emprego, ficaram esgotadas, estressadas. A solução para o capitalismo foi simples: demitir e contratar novas trabalhadoras para explorá-las até seus limites.

Neoliberalismo não é só uma teoria macroeconômica. É também um dispositivo psicológico aliado a um discurso moral aplicado à produção de sofrimento para se obter desempenho
- Christian Dunker

A ideologia neoliberal, afirma o professor, aliena os cidadãos induzindo-os a aceitar que quanto mais são pressionados, mais eles produzem e, portanto, mais inseridos no sistema eles permanecem.

Mundo moderno

Nesse contexto, as novas tecnologias, sejam as redes sociais ou os aplicativos de gestão de prestação de serviços, como o Uber, são elementos chave.

“Tecnologias afetam as relações privadas e públicas porque diminuem o tempo das pessoas consigo mesmas. Ao mesmo tempo aumentam a necessidade de mostrar aos outros uma imagem que querem construir de si”, explica Dunker.

E o neoliberalismo capitalista se aproveita dessa realidade, já que as relações interpessoais, as relações mais íntimas entre as pessoas não interessam ao mundo do trabalho. Assim, toda ‘novidade’, como networking ou redes sociais, que consiga paralisar a experiência da intimidade ou que torne o cidadão mais ‘individual’ se torna um instrumento do capitalismo, no objetivo de explorar capacidade produtiva desse cidadão.

Estudo feito pelo Latesfip sobre os problemas mentais provocados nos trabalhadores resultou no livro O Neoliberalismo como Gestão do Sofrimento. A pesquisa,  feita com a participação dos alunos, utilizou como método uma análise histórica do processo de desenvolvimento econômico mundial e constatou que as patologias apresentadas pelos trabalhadores, como os transtornos mentais, não eram fruto individual, com causas ‘próprias’ ou personalizadas dos pacientes, mas eram decorrência do meio social e profissional em que viviam.

Sociedade

“O sujeito é educado a pensar: ‘Eu lutando, vou passar em uma faculdade e vou ter um trabalho melhor, assim vou ficar satisfeito’”, diz Cristian para explicar porque o trabalhador se submete a pressões, cobranças de metas e excesso de trabalho.

E como a sociedade também cobra posturas dos indivíduos, tanto quanto ele mesmo, a expectativa criada sobre o campo pessoal, o social e o profissional é enorme e prejudicial à saúde porque é construída a partir do que outras pessoas demonstram, em especial, nas redes sociais. “Trata de uma apenas ilusão de perspectiva. O que acontece, na verdade não acontece”, diz Dunker.

Moderna exploração do trabalhador

Todas as transformações sociais geradas pelo capitalismo ao longo dos tempos tiveram influência direita nas relações de trabalho, concluíram os estudiosos da USP.

A precarização do trabalho não é novidade. O trabalho sem proteção social, sem direitos, também não. Mas, particularmente, as transformações vistas no Brasil foram de uma espantosa velocidade, diz Dunker se referindo à reforma Trabalhista que ‘legalizou’ as relações e condições de trabalho precárias.

“Isso é recente e os efeitos desse desmonte, em especial na saúde do trabalhador, nós veremos de forma muito acentuada daqui há cinco ou dez anos”.

A reforma Trabalhista foi uma ação neoliberal que mudou o que se entende como sendo função no trabalho, diminuindo o conceito do “trabalho coletivo” e trazendo a carga de “individualismo” onde a competição é o foco, diz o professor.

“E o trabalhador comprou a ideia de que ele é um patrão em potencial. Quando se fala em tirar direitos, ele pensa que vai ter mais liberdade de empreender, de competir”, pontua.

O golpe foi ‘perfeito’ porque vendeu a ilusão de que, se continuasse como antes, o trabalhador seria prejudicado e ao mesmo tempo criou um inimigo que seria o potencial aliado desse trabalhador.
- Christian Dunker

Paralelamente, os métodos de gestão e organização do trabalho para ‘aumentar a eficiência e a produtividade’ têm contribuído para o aumento dos transtornos mentais dos trabalhadores.

Um exemplo é o que acontece nos call-centers, diz Dunker. “São máquinas de sofrimento, onde há um ‘ditador’, exercendo pressão com violência psicológica sobre os trabalhadores, dizendo a eles a todo momento o que e como devem fazer e qual resultado devem apresentar”.

“O número do desemprego é grande e cada vez mais pessoas se sujeitam a trabalhos precários para sobreviverem. Isso é extorsão e tende a piorar”, afirma Cristian Dunker. Para ele, este é o momento em que as informações, análises e dados disponíveis devem ter papel importante para a reversão do número de casos de transtornos mentais causados pela exploração do capital.

Para os estudiosos da USP, o maior desafio é usar os dados das pesquisas para promover uma transformação social, já que o contexto econômico atual, no Brasil, indica uma piora nos quadros.

Debate na América Latina

Além de promover minicursos em vários locais do país, abertos à toda a sociedade para debater o tema, o Latesfip participará da 5ª Jornada de Investigação: Neoliberalismo, Corpos e Clínicas de Transformação, em Montevidéo, no Uruguai, de 9 a 11 de setembro de 2019.

A atividade contará com a participação de conferencistas internacionais. Nelson da Silva Jr, Vladimir Safatle e Christian Dunker, da USP, participarão, contribuindo com as pesquisas feitas no trabalho Neoliberalismo e Gestão do Sofrimento Psíquico: Análise, Diagnóstico e Estratégias de Cuidado.

Dados sobre suícidio

No mundo todo, uma pessoa comete suicídio a cada três segundos. Segundo a Associação Psiquiátrica da América Latina, no Brasil, a cada 45 minutos uma pessoa tira a própria vida. O suicídio é também a principal causa de mortes entre jovens de 15 a 29 anos de idade.

O Brasil ocupa o 8º lugar em números absolutos e a 113ª posição na média mundial, embora se acredite que haja subnotificação dos casos. De 2007 a 2016, segundo dados do Ministério da Saúde, 106.374 pessoas morreram dessa forma.