Deputado paraguaio Ricardo Canese detalha o escândalo de Itaipu
Para o parlamentar, o obscuro acordo ainda vai assombrar o presidente de seu país. E Jair Bolsonaro
Publicado: 16 Agosto, 2019 - 11h09 | Última modificação: 16 Agosto, 2019 - 11h19
Escrito por: Murilo Matias, da Carta Capital
O recuo de última hora do Partido Colorado, o MDB paraguaio, salvou o pescoço do presidente do país, Mario Abdo Benítez. Por causa de um acordo secreto, mal explicado e prejudicial ao Paraguai, assinado com o brasileiro Jair Bolsonaro, Benítez corria sério risco de sofrer impeachment. Segundo o acerto, desconhecido pelo Congresso e pela população, Benítez e o vice paraguaio, Hugo Velázquez, assinaram uma revisão do tratado da Usina de Itaipu que geraria um prejuízo calculado entre 200 milhões e 300 milhões de dólares aos cofres públicos. A desistência dos parlamentares colorados de apoiar o processo de cassação deu uma sobrevida à dupla, não se sabe até quando. “Tivemos muitos governos entreguistas, mas nenhum se atreveu a lesar a nossa soberania de maneira tão grave”, afirma o deputado Ricardo Canese, um dos representantes dos vizinhos no Parlamento do Mercosul.
O acordo não é um problema apenas para o Paraguai. As investigações têm potencial para atingir a empresa Leros, que explora jazidas de diamante e nióbio no Brasil e estava interessada em adquirir excedentes de energia gerados pelo lado paraguaio de Itaipu. Um dos representantes da Leros é Alexandre Giordano, suplente do senador Major Olímpio, filiado ao PSL e líder do governo Bolsonaro.
Em um dos e-mails trocados por autoridades paraguaias no período de assinatura do acordo secreto, divulgados pela mídia local, menciona-se que “o representante comercial da empresa Leros do Brasil se encontra no país, a fim de dar seguimento ao acordo de compra e venda de excedente de energia ao mercado brasileiro”. Em outra mensagem, lê-se que tal representante “vem em representação da família presidencial do país vizinho”. Diante do escândalo, tanto Benítez quanto Bolsonaro anunciaram a suspensão do acordo.
Canese afirma, porém, que a pressão continua. Segundo o deputado, o escândalo de Itaipu veio à tona em um momento de enorme descontentamento da população paraguaia. “Bolsonaro deveria ter ajudado Benítez antes. Agora acabou a confiança de que o presidente possa negociar habilmente e defender o nosso país”.
CartaCapital: Quais fundamentos davam suporte ao pedido de impeachment?
Ricardo Canese: A causa principal é o acordo secreto firmado entre Abdo e Bolsonaro, segundo o qual o Paraguai perderia entre 200 milhões e 300 milhões de dólares de imediato. Trata-se de uma renúncia aos direitos do país no tratado binacional de Itaipu. Somem-se as negociatas. Os valores seriam embolsados por empresas brasileiras públicas ou privadas, aparentemente ligadas a gente do entorno do presidente brasileiro. Tivemos muitos governos entreguistas, mas nenhum se atreveu a lesar a nossa soberania de maneira tão grave.
CC: Há apoio popular ao afastamento?
RC: A maior parte da população mostra-se favorável. Ocorreram manifestações em todo o país e até o bloqueio de estradas. A novidade é que, depois de um período de silêncio, o grupo presidencial se mobilizou.
CC: Como avalia a relação entre Benítez e Bolsonaro?
RC: Abdo Benítez confundiu uma questão fundamental no campo internacional. Uma coisa é a amizade ou a proximidade ideológica, outra são os interesses por trás do discurso de Bolsonaro. Nosso presidente deveria defender os interesses do Paraguai. Por isso, até meios de comunicação conservadores e setores do empresariado classificaram o ato como uma traição. Fui coordenador-técnico das negociações de Itaipu entre os ex-presidentes Lula e Fernando Lugo. Elas foram duríssimas. Perguntava-me por que Lula era tão duro, mas ele era presidente dos brasileiros e não dos paraguaios. Por fim, saiu um acordo vantajoso para as duas partes.
CC: Como repercutiu a anulação do contrato de Itaipu?
RC: Bolsonaro deveria ter ajudado Benítez antes. Agora acabou a confiança de que o presidente possa negociar habilmente e defender o Paraguai. O mandatário brasileiro chantageou o nosso presidente, disse que não iria permitir a entrada de arroz produzido do lado de cá da fronteira. Desde fevereiro, a Eletrobras cortou recursos para Itaipu, exerceu uma verdadeira guerra econômica. Bolsonaro está levando seu aliado à morte política.
CC: Legendas conservadoras sinalizaram aderir ao impeachment, mas recuaram. O que aconteceu?
RC: É uma disputa enorme, nunca existe certeza, há venda de votos, são muitas as questões. Não só a oposição, mas grande parte do Partido Colorado, que responde ao ex-presidente Horácio Cartes, deu a entender que votaria pelo afastamento, mas eles voltaram atrás. Tanto na Câmara quanto no Senado são necessários dois terços dos votos. O afastamento de Hugo Velázquez, vice-presidente, me parece mais provável neste momento.
CC: Além da crise de Itaipu, o atual governo enfrenta protestos de agricultores e a população reclama da inflação. Como é a avaliação desta gestão?
RC: Há muito descontentamento. Bení-tez perdeu, em menos de um ano, a popularidade que tinha no início do mandato. Crescíamos bem, mas não repartíamos riqueza. Agora está pior. Há recessão e os problemas sociais aumentaram por causa da incapacidade de gestão. A frase mais popular por aqui é “desastre con Marito”, misturando espanhol e guarani. Vivemos sob um governo reacionário e oligárquico que não resolve os problemas.
CC: O que representa a Usina de Itaipu para os paraguaios?
RC: Itaipu, além de estratégica, é uma mina de ouro. A energia elétrica é um dos principais produtos de exportação do Paraguai. À parte ser uma fonte de receita externa, é um símbolo nacional, como o canal para os panamenhos, o gás para os bolivianos e o cobre para os chilenos.
CC: O atual momento tem alguma semelhança com o processo de afastamento do ex-presidente Fernando Lugo?
RC: É muito diferente. O processo de Lugo foi inventado. Houve um complô para destituí-lo. Sicários contratados por latifundiários mataram campesinos e culparam o então presidente. Os paraguaios sabem disso e hoje têm vergonha por destruírem a institucionalidade democrática. O ex-presidente segue como uma das figuras mais populares do país e a Frente Guasú não tem um só integrante acusado de corrupção.