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Desembargadora defende direito de Lula dar entrevista

Ela relembra a canção de Chico Buarque e Gil para ressaltar que “não me prestaria a exercer o papel de censor, pois cabe ao magistrado, nos termos da Constituição, exercer o papel de garantia de direitos"

Publicado: 01 Agosto, 2018 - 09h22 | Última modificação: 08 Agosto, 2018 - 17h42

Escrito por: Revista Fórum

RICARDO STUCKERT
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Nos idos de 2002, quando estava na 19ª Vara Criminal de São Paulo, recebi diversos pedidos, de órgãos de imprensa brasileiros e estrangeiros, para a realização de entrevistas com pessoas que estavam presas, pelo sequestro de Washington Olivetto.

Em relação à minha posição como juíza, meu norte sempre foi: não dar entrevistas sobre meus processos, que estivessem em curso, pois é fundamental preservar a jurisdição; jamais colocar os réus à exposição e execração pública; não dar qualquer aval para o julgamento midiático; realizar as audiências em clima de concentração e não permitir que se tire o foco de atenção do que é fundamental neste ato, de modo que não permiti que equipe de filmagem participasse de audiências (lembro que fui consultada se deixaria filmar as audiências, no caso do maior roubo a banco do Brasil, o roubo do Banespa, no caso do Roger Abdelmassih e outros mais).

Mas cabe ao juiz garantir os direitos fundamentais e nesta perspectiva é que deferi todas as entrevistas, de todos os órgãos de imprensa, que foram solicitadas no caso do sequestro, evidentemente sem perguntar as razões para os órgãos de imprensa requererem as entrevistas. Apenas me afiancei que réus e respectivos advogados fossem consultados. Somente um dos réus concordou em dar entrevista, Mauricio Norambuena.

Na verdade, este tipo de pedido nem deveria chegar ao Judiciário. Caberia à própria administração penitenciária criar os mecanismos para que tal fosse assegurado. Não há uma linha, em qualquer lei, que imponha esta restrição aos presos. Mas se o próprio Estado vulnera os direitos humanos, não há outra opção a não ser recorrer ao Judiciário.

As razões jurídicas que registrei na oportunidade dizem respeito à função primeira do juiz, que é o de garantir os direitos. O magistrado tem o elevado poder-dever de permitir que direitos fundamentais saiam do papel e se tornem realidade.

Relembrei sucintamente a história dos direitos de expressão, informação e imprensa, direitos que são interligados, registrando que foi uma declaração de Direitos do Estado de Virginia, datada de 1776, que reconheceu explicitamente a liberdade de expressão através da imprensa. Em 1791 a Emenda número 1 da Constituição dos Estados Unidos da América garantiu este direito e em 1789 a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão contemplou estes direitos, estabelecendo que:

A livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem; todo o cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos em lei.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, em seu artigo 19, acolheu estes direitos e também expressamente o direito de informação. Podemos destacar, ainda, o artigo 19 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966; o Convênio Europeu para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais; e o artigo 13 do Pacto de San José da Costa Rica, ratificado pelo Brasil.

O nosso arcabouço constitucional dá proteção à liberdade de manifestação de pensamento. Determina que é livre a expressão da atividade intelectual, artística, cientifica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. Estabelece o direito de receber dos órgãos públicos informações de interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado. Garante que a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição. Não admite que qualquer lei possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social. Ainda veda censura de natureza política, ideológica e artística.

Isto tudo está cravado, como em pedra, na nossa Constituição.

Em certa medida, e por inúmeras vezes, a liberdade de imprensa condensa os demais direitos: o de pensamento, informação e expressão.

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Não se olvida que o preso tem limitações em sua liberdade, com fundamento constitucional, em razão da natureza desta sua condição, porém, as restrições aos direitos devem, obrigatoriamente, ter a limitação na própria Constituição, permanecendo intocado o conteúdo essencial dos direitos fundamentais e respeitado o princípio da proporcionalidade que confere um critério de adequação e necessidade.

Se proibisse a entrevista, ou seja, que o preso exercesse o direito de liberdade de expressão atingiria o direito de informação e de liberdade de imprensa, que são direitos sociais.

O direito que os presos possuem são, na verdade, de todos e protegidos pela Constituição, que acolheu valores éticos e políticos de uma sociedade democrática.

Quando Padre Antonio Vieira questionou o modo de proceder do Tribunal e suas intervenções públicas tocaram em temas proibidos, já que defendia a abolição de discriminações contra os cristãos-novos, foi punido com o silêncio e perdeu o direito à palavra.

Finalizei a decisão, após estas considerações, dizendo que a sanção imposta a Padre Vieira não seria aplicada em 2002. Que não me prestaria a exercer o papel de censor, pois cabe ao magistrado, nos termos da Constituição Federal, exercer o papel de garantia de direitos.

*Kenarik Boujikian é desembargadora do TJSP e cofundadora da Associação Juízes para a Democracia