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Desmonte de políticas fez crescer a fome entre crianças, ‘filhas do golpe’"

Afirmação é da ex-ministra Tereza Campello. Ela lembra que a insegurança alimentar já aumentava antes da pandemia. E atinge 47% das famílias com crianças de até 5 anos – 58% no caso das negras

Publicado: 07 Junho, 2022 - 17h09 | Última modificação: 07 Junho, 2022 - 20h46

Escrito por: Vitor Nuzzi, da RBA

Leonardo França/Brasil de Fato
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A pandemia agravou a situação, mas a fome e a insegurança alimentar já vinham crescendo no Brasil após o impeachment em 2016, segundo a ex-ministra e professora Tereza Campello.

Durante audiência pública promovida nesta terça-feira (7) pela Comissão de Seguridade e Família da Câmara, ela usou a expressão “filhas do golpe” para se referir às crianças nascidas nos últimos anos e aos impactos da ausência ou redução de políticas públicas.

Segundo o Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil (Enani), citado pela ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (de 2011 a maio de 2016), em 2019 quase metade das famílias brasileiras com crianças menores de 5 anos (47,1%) tinha algum grau de insegurança alimentar.

Esse índice cai para 40% entre crianças brancas e sobe a 58% entre as negras.

“O enfrentamento à agenda de fome, de desnutrição, o combate à pobreza, não podem ser no Brasil dissociado do enfrentamento do racismo estrutural”, afirmou Tereza.

O Enani é coordenado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em parceria com Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e Universidade Federal Fluminense (UFF), com participação de outras instituições.

Consequência dramática

Tereza Campello concorda que todos os países sofreram com uma situação de quebra das cadeias produtivas e aumento nos preços dos alimentos, mas ressaltou que o Brasil poderia enfrentar o problema de outra forma, evitando a volta ao chamado Mapa da Fome.

Tinha um Estado organizado para isso. Essa é, na minha avaliação, a consequência dramática do golpe, do desmonte (em 2016), com impacto gigantesco nas crianças. Eu diria que elas são as filhas do golpe.
- Tereza Campello

Assim, a ex-ministra cita fatores apontados pelo Fundo das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) como determinantes para que o Brasil, até poucos anos atrás, tivesse conseguido reduzir a fome e a pobreza. Fatores como prioridade política, aumento da renda, crescimento do emprego formal, apoio à agricultura formal e diversas políticas públicas. “Não adianta tratar da fome e da desnutrição, em especial a infantil, como fenômeno isolado. Temos de enfrentar esse fenômeno complexo com políticas complexas.”

Teto de gastos

Atual professora visitante da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, onde coordena a cátedra Josué de Castro, Tereza Campello refuta a afirmação de que a fome é efeito da pandemia.

“Isso não é verdade: O conjunto dos dados consolidados que nós temos no Brasil já mostra que a gente tinha um crescimento da fome, da insegurança alimentar, antes da pandemia. Isso tem direta ligação com a Emenda 95 (o “teto de gastos”), com o desmonte das politicas públicas que passa a acontecer com o golpe”, afirma.

“Mesmo o auxílio emergencial é insuficiente para dar conta dos fatores que levam a população à situação da insegurança alimentar. (Quadro) contínuo, dramático e permanente e, aí sim, acirrado no período da pandemia”, acrescenta a ex-ministra.

Representante da FAO no Brasil, Rafael Zavala afirmou que o “grande problema” da América Latina não é tanto a fome, mas a má nutrição. “O que tem muito a ver com renda. No Brasil, o problema não é a disponibilidade de alimentos, é o acesso e também a utilização”, acrescenta. Em nível mundial, ele aponta uma situação de “tempestade perfeita”, formada por pandemia, inflação, guerra (com impactos na logística e nos preços de gás, petróleo e fertilizantes) e mudanças climáticas. (prejudica produtores). O Índice de Preços da FAO atingiu em abril seu maior nível em 32 anos, com alta de 12,6% em 12 meses.

Exclusão e futuro

Na audiência pública, presidida pela deputada Alice Portugal (PCdoB-BA), as professoras Patrícia Boer e Fabíola de Souza trataram das consequências da questão alimentar para as próximas gerações. Presidenta da Associação Brasileira das Origens Desenvolvimentistas da Saúde e da Doença (DOHaD), Patrícia observou que a exclusão social já pode ser determinada quando a criança ainda está no útero. Segundo ela, o período de mil dias que compreende a gestação e os primeiros dois anos de vida tem “janelas de oportunidade, plasticidade para moldar o que o indivíduo sai ser na idade adulta”.

A médica pediatra Fabíola destacou também a qualidade da alimentação no Brasil. E citou artigo em que os autores mostram que dos 20 itens que mais aumentaram de preço recentemente no Brasil, 19 são alimentos in natura.

Ao mesmo tempo, produtos processados (salsicha, mortadela, biscoito) ficaram abaixo da inflação. Assim, além da desnutrição em si, surgem outros problemas, como carência de micronutrientes, sobrepeso e obesidade.

“O que está acontecendo agora vai repercutir por muitas e muitas décadas”, diz a pesquisadora, apontando impactos negativos para a saúde física e mental das próximas gerações. “Insegurança alimentar, pobreza e desigualdade comprometem a saúde em curto e longo prazo. Isso é um compromisso de todos nós.”