Escrito por: Cláudia Motta | RBA

Despejo imoral, desumano, ilegal: Quilombo Campo Grande resiste

Artistas, intelectuais, parlamentares e ativistas manifestam solidariedade às famílias de agricultores agredidas pelo governo Zema (MG). Escola Eduardo Galeano será reconstruída

Reprodução

Há 15 dias teve início uma ação selvagem contra famílias de agricultores que há 22 anos fazem do Acampamento Quilombo Campo Grande, em Minas Gerais, uma terra produtiva. Depois de 56 horas de resistência, 22 das mais de 450 famílias do acampamento foram despejadas sob forte ofensiva policial determinada pelo governador Romeu Zema (Novo). A escola Eduardo Galeano, que atendia crianças, jovens e adultos, foi destruída. A decisão judicial e a operação policial incompatíveis com a lei e com o cenário de pandemia foram alvos de mais um ato de desagravo na noite desta quarta-feira (26).

Um ato político político-cultural em defesa da vida e da reforma agrária uniu diversas forças sociais na solidariedade ao Quilombo Campo Grande. O evento transmitido pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) ampliou a denúncia contra a injustiça e serviu para fortalecer as ações de resistência do Quilombo Campo Grande. Entre elas, reconstruir a escola e levar apoio às famílias que ainda lutam contra o despejo “imoral, desumano, ilegal”. Assim classificou Marina dos Santos, integrante do MST no Rio de Janeiro, que conduziu a live ao lado de Silvio Netto, do MST de Minas.

“Essas famílias foram colocadas lá, após a ocupação, por um decreto do governo de Minas Gerais desapropriando a área”, explicou o advogado Ney Strozake, do MST. “A lei que regulamenta as desapropriações para fins de reforma agrária diz que iniciado, um processo de assentamento, não é mais possível retirar as famílias. A solução que a lei apresenta é o estado deixar as famílias ali e reparar o suposto proprietário. A retirada das famílias que estão nesse pré-assentamento representa um duro golpe contra a lei”, disse Strozake.

Denúncia

Para o advogado, só a mobilização popular pode fazer avançar a reforma agrária no Brasil. “Só houve desapropriação onde houve ocupação. É a luta que garante a lei. A lei está escrita, as palavras são muito bonitas, mas é a luta que faz com que saiam do papel. O governo não age a não ser por pressão. Este evento (a live) nesse momento representa bem essa força, desse apoio que estamos recebendo”, afirmou o advogado.

Silvio Netto destacou que o que houve em Campo do Meio é a realidade vivida pelos trabalhadores rurais no campo brasileiro. O que diferenciou e chamou a atenção de todo o mundo foi a crueldade, a desumanidade. “Ninguém acreditava que em meio a uma pandemia, o estado brasileiro fosse praticar essa guerra biológica contra o MST, contra as famílias do Quilombo Grande”, disse Netto.

O dirigente do MST fez uma denúncia. Durante cinco meses, o município de Campo do Meio contava com 14 casos de covid-19. “Hoje, 15 dias depois, são 37 casos com a chegada das tropas. As famílias estão em risco em função dessas atrocidades da reintegração de posse”, afirmou. Netto cobra a testagem em massa, inclusive dos policiais, e ressalta a “covardia” da ação: “O próprio estado colocou seus trabalhadores expostos ao coronavírus”.

Otelino está livre

Silvio Netto alertou que a polícia permanece no Quilombo Campo Grande. “Estão dando segurança para que as máquinas dos fazendeiros continuem a destruição de lavouras”, denunciou. Segundo ele, essas máquinas avançaram inclusive sobre a plantação de um agricultor já regularizado. “Senhor Otelino é grande referência na agroecologia. É pastor no município”, relatou. O agricultor foi reclamar na PM sobre a destruição da sua produção e acabou detido. “Uma covardia, a gente não acredita que isso possa acontecer. Uma prisão de caráter político. Está com alvará de soltura e ainda permanece preso”, protestou Netto, para avisar: “Não vão conseguir nos calar. A luta pela reforma agrária avança”. E de fato avança. Ainda durante a live foi comemorada a libertação de Otelino.

Para o coordenador nacional do MST João Pedro Stedile, o despejo do Quilombo Campo Grande está inserido nos marcos da política nacional. “A leitura que temos feito é que há disputa de três projetos da agricultura: o latifúndio atrasado que se abastece do dinheiro do capital financeiro e quer se apropriar da natureza; o agronegócio, que acumula com commodities e usa técnicas que aumentam a exploração, uso intensivo de veneno e expulsando a mão de obra do campo; e o nosso projeto dos agricultores familiares com produção de alimento saudável, sem agrotóxico, que usa mão de obra familiar e cria muito emprego.”

O latifúndio atrasado e o agronegócio que sustenta o governo de Jair Bolsonaro, segundo Stedile, “têm a ganância de se apropriar da natureza”, e a mesma mentalidade que leva à invasão de terras indígenas na Amazônia, de quilombos Brasil afora. “A resistência de Quilombo do Meio é a resistência do nosso projeto.”

Solidariedade

Durante toda a live, foram exibidas mensagens de solidariedade de artistas, intelectuais, parlamentares, ativistas. O teólogo Leonardo Boff lembrou que o MST trabalha na produção de alimentos orgânicos e ocupa terras que abandonaram a função social. Boff manifestou seu protesto diante da derrubada da escola Eduardo Galeano. “Vamos fazer tudo para reconstruí-la. Uma violência contra o saber e contra as crianças.”

Café GuaiíQuilombo Campo GrandeEscola Eduardo Galeano 

A cineasta Tata Amaral expressou revolta diante do despejo. “Trata-se de agricultores que estão fazendo o bem para as pessoas, produzindo alimentos saudáveis, sem agrotóxicos, de maneira sustentável. São brasileiros de posse de uma terra que está sendo trabalhada. Peço ao governador Zema e às autoridades que parem com essa violência. Toda solidariedade a vocês.”

Tata disse “adorar” o café Guaií. A produção mais conhecida do Quilombo Campo Grande foi também mencionada nos comentários das centenas de pessoas que acompanhavam a live, com sugestões para que todos consumam o café e assim ajudem na reconstrução da escola.

Outro consumidor do café Guaií, o escritor, ator e humorista Gregorio Duvivier destacou que o MST garante a segurança alimentar do brasileiro e recebe em troca violência e despejo. “Todo meu apoio ao Quilombo Campo Grande. Minha solidariedade a todos vocês, meu agradecimento e minha parceria. O MST hoje é quem faz comida de verdade no Brasil, além de garantir o direto à terra, garante nossa segurança alimentar e educação libertadora a todos os seus integrantes. Toma vergonha na cara, Zema. Respeita o MST, respeita o trabalhador rural.”

Música mineira solidária

Silvio Netto lembrou que a reconstrução da escola Eduardo Galeano é muito simbólica para o MST. “Expressa a dimensão da solidariedade e da luta que travamos”, disse. O Quilombo Campo Grande – nome em homenagem aos lutadores brasileiros que estiveram nessa região –  conta com 11 acampamentos e três assentamentos. “São 22 anos de resistência histórica nesse território. E a luta permanece inspirada nessa resistência do povo brasileiro.”

O dirigente do MST disse que no Brasil tem muita terra sem gente e muita gente sem terra. E convocou o povo para se organizar. “Somos solidários a todos que estejam sofrendo despejo”, ressaltou, sobre a campanha #Despejozero no campo e na cidade. 

O deputado federal Marcelo Freixo (Psol-RJ), disse considerar muito grave o que aconteceu em Minas. “Um ato perverso, contra famílias que viviam lá há mais de 20 anos produzindo sem agrotóxico”, disse. “Despejo em pandemia é desumano. Que a gente possa construir um Brasil com terra e com futuro.”

Do histórico Clube da Esquina, artistas como Wagner Tiso e Márcio Borges também enviaram mensagens de solidariedade ao MST e aos agricultores do Quilombo Campo Grande. A cantora Aline Calixto pediu “basta a essa violência toda”. Antes de cantar em homenagem aos trabalhadores rurais sem terra, a cantora também mineira Fernanda Takai, vocalista do Pato Fu, falou sobre os muitos alimentos produzidos e as muitas pessoas atendidas pelas produções do MST. “Muita dignidade em jogo nessa história.”

Samuel Rosa, do Skank, também emprestou sua voz e sua música à causa do Quilombo Campo Grande. E criticou: “Despejo em tempos de pandemia é pura covardia”.

Escola Eduardo Galeano

Trabalhador constrói, Zema destrói

O deputado federal Rogério Correia (PT-MG) citou a covardia do governo Zema e da Justiça, que autorizou o despejo. “Parece não ter limites. Mas com certeza vamos vencer essa batalha. O que vocês fizeram para resistir, demonstrou para todos que essa terra precisa continuar nas mãos de quem produz e quem trabalha”, disse em sua mensagem exibida durante a live. Para ele, a Justiça não pode beneficiar o fazendeiro rico que deve muito à União. “Temos de dizer ao Brasil e ao mundo que tem um governador que destrói escola e quer despejar famílias em plena pandemia. Essa luta é muito importante para o povo brasileiro, para a reforma agrária.”

Também professora, como Correia, a deputada federal Bia Cerqueira (PT-MG) igualmente se revoltou com a destruição da escola Eduardo Galeano, pelo governo de Minas Gerais. “Vamos reconstruir a escola, as casas, a vida dos que perderam sua dignidade de moradia nesses processo absurdo.”

A deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ) também protestou contra a destruição de um “templo de formação” onde estudavam crianças e também adultos. “Solidariedade e apoio pela reconstrução dessa escola.”

As falas na live eram intercaladas por imagens do Quilombo, com fortes referências à produção agroecológica, respeito ao equilíbrio ambiental, ao trabalho comunitário. Em choque, a invasão policial e os destroços que sobraram após o despejo. “O capitalismo faz isso: destrói a vida em nome do lucro”, observa a agricultora Tuíra Tulle em vídeo comovente, enquanto percorre a terra destruída, os restos da escola Eduardo Galeano colocada abaixo. Tulle avisa que com a solidariedade de muita gente tudo será reconstruído, tijolo a tijolo. “Os sonhos permanecem.”