Em missão em SP, membros do CNDH atuam para combater trabalho escravo de costureiras
CUT integra a Comissão Nacional dos Direitos Humanos. Missão ouviu depoimentos de trabalhadoras bolivianas, venezuelanas e peruanas para elaborar um plano de ação para coibir tal prática
Publicado: 31 Agosto, 2023 - 16h07 | Última modificação: 31 Agosto, 2023 - 17h17
Escrito por: Andre Accarini
Desde o dia 27 de agosto membros do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), entre eles a diretora-executiva da CUT, Vírginia Berriel, que representa a Central no Conselho, têm atuado em São Paulo para apurar, investigar e elaborar uma estratégia de ação para combater as condições degradantes de trabalho às quais são submetidas trabalhadoras brasileiras e de outros países em oficinas de costura na capital paulista.
A estimativa é de que haja mais de 150 mil delas em condições análogas ao trabalho escravo, caracterizado por jornadas extenuantes de que chegam a 20 horas diárias, ausência de condições básicas de higiene nos locais e, principalmente pela relação de vulnerabilidade entre empregadores e trabalhadoras, que têm seus documentos retidos pelos patrões para que se tornem reféns se suas ordens e exploração.
Ao todo foram ouvidas 30 costureiras durante os últimos dias. São trabalhadoras, em sua maioria, bolivianas, peruanas e venezulenas, mas há trabalhadoras de outros países também.
O objetivo é elaborar um relatório, que deve ser finalizado em 60 dias, traçando um panorama completo da situação denunciando as causas e apontando medidas para que o trabalho escravo seja combatido.
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“Nós, do Conselho, estamos mapeando, ouvindo, coletando dados e vamos montar um relatório minucioso sobre o trabalho escravo no ramo da costura e no trabalho doméstico também. A partir dele, o CNDH aplicará resoluções e recomendações que tem que chegar ao governo, ao Ministério das Relações Exteriores, porque essas pessoas, além de serem exploradas de foram cruel, estão sendo roubadas, seja quando saem do país ou aqui no Brasil”, diz Virgínia Berriel.
A dirigente explica que é preciso regularizar a situação delas no Brasil, como uma das formas de garantir que possam exercer seus direitos. No entanto para isso, estimado em cerca de R$ 6 mil é alto para as condições socioeconômicas delas. “Este é um dos motivos as colocam em situação de extrema vulnerabilidade. Elas acabam se submetendo à exploração com a promessa de que ganharão o dinheiro necessário para custear essa regularização”, diz Virgínia, reforçando que essa condição as tornam “presas fáceis” para o os exploradores.
Políticas públicas - Além da fiscalização, de acordo com a missão do CNDH faltam políticas públicas efetivas que poderiam sanar a questão da regularização, por exemplo. E ações a serem propostas deverão também incluir estratégias que dizem respeito ao acolhimento, encaminhamento e assistência social, já que essas trabalhadoras chegam ao país e condição de vulnerabilidade e, após serem submetidas a essa realidade de exploração, se tornam ainda mais vulneráveis.
Fiscalização: caminho difícil
Apesar de a ‘pulverização’ no setor, dada pela grande quantidade de núcleos de costureiras, espalhados pela cidade ser um obstáculo para a fiscalização, além da escassez de pessoal no Ministério Público do Trabalho de São Paulo para atuar contra o trabalho escravo. São apenas quatro procuradores e dois auditores fiscais em todo o estado O quadro é resultado da destruição não somente do Ministério do Trabalho nos últimos anos, com o governo anteriores, como também um ‘emparedamento’ do Ministério Público do Trabalho, com cortes de recursos.
Mas, mesmo com as dificuldades, haverá uma resposta contra o trabalho escravo, reforça a dirigente. “Nós, do Conselho, temos que trabalhar de forma conjunta com a Pastoral do Migrantes dos Migrantes, também com o Cami, o Centro de Apoio e Pastorais dos Migrantes, além do Ministério Público do Trabalho, Ministério do Trabalho, com sindicatos de domésticas e de costureiras, para reverter essa situação. Ou enfrentamos o problema ou perderemos qualquer chance remota de fiscalizar”, diz Virgínia.
Algumas das estratégias, para além das denúncias recebidas por sindicatos, dizem respeito a criar campanhas de conscientização da sociedade e das próprias trabalhadores em relação aos seus direitos e sobre as condições de trabalho.
Para a percepção de muitas das trabalhadoras, tais condições não representariam uma exploração violenta, já que, culturalmente, em seus países, elas estão habituadas a condições semelhantes, tais como uma jornada de 20 horas, por exemplo. “Mas é preciso orientá-las de que se trata de uma violência” diz Virgínia.
“Denúncias ajudam, mas o principal é a campanha de conscientização. Quais são os direitos? O que é trabalho escravo? Por que ter dignidade? São questões que fazem parte dessa conscientização. E isso pode ser feito, por exemplo, por uma rádio, voltada para esse público com boletins informativos explicando seus direitos, tanto no pais de origem como aqui no Brasil”, explica Virgínia.
Mapeando o inimigo
Com base nas dificuldades de detecção dos milhares de núcleos onde se encontram essas trabalhadoras, os membros do Conselho afirmam que uma das estratégias é mapear onde chega essa produção.
No entanto, se trata de outro caminho espinhoso, já que cada núcleo tem um tipo de produção. É como se fosse uma fábrica onde cada setor faz um tipo de serviço específico para a finalização do produto. No entanto, neste caso, esses setores estão espalhados em locais diferentes. E geralmente, de difícil identificação.
A grosso modo, portanto, se um núcleo faz a costura de uma peça, um outro colocará o botão; outro o zíper; outro um arremate e assim por diante.
“Essa produção chega lá no Brás, na feirinha da madrugada, e poucas vezes chega a uma grande cadeia de lojas como a Renner, a Riachuelo, etc. A procuradoria já investigou fiscalizou essas empresas e então elas começaram a enviar a produção para países asiáticos, tirou a mão de obra daqui e passou a fazer lá, para fugir dessa fiscalização”, conta a dirigente da CUT e membro do CNDH.
Chegar à cadeia de produção, seguindo os relatos colhido, é ainda difícil e para o CNDH, o ideal seria criar uma lei para exigir de empresas grandes que elas divulguem a origem de sua produção, façam o mapa da produção. “E isso tem que estar certificado, porque a partir do momento que isso acontece, acaba o trabalho escravo”, pontua Virgínia.
Mas quando se trata do comércio em geral, cuja grande maioria é de pequenas lojas e em grandes centros populares, como o Brás, em São Paulo, onde é comum, inclusive, haver ‘bancas’ montadas nas calçadas para vender essas roupas, a fiscalização e a investigação se tornam quase impossíveis. Daí a necessidade de outras ações como as campanhas de conscientização e orientação.
“Com base no que relata o Ministério Público do Trabalho em relação a essa situação, nós acabamos por perder a expectativa de fiscalizar tudo isso. Se são 150 mil empresas, entre as que ‘contratam’ e as das próprias pessoas que costuram, o tamanho da dificuldade é incalculável”, ela diz.
Há muitas dessas trabalhadoras, ressalta Virgínia, que conseguiram ‘se livrar dos predadores’, mas acabaram comprando uma máquina de costura para continuar trabalho e se tornaram reféns de trabalho precarizado, gerado por elas mesmas. Este é outro ponto que merece atenção, cobrando de quem adquire essa produção siga regras que combatam o trabalho escravo e precarizado.
Depoimentos
Entre os principais relatos, além das condições de cerceamento de liberdade, exploração exacerbada do trabalho, retenção de documentos e até taxas para poder usar banheiro e dar comida para filhos que acompanham essas trabalhadoras, elas contaram que um dos anseios é poder regularizar a situação delas no Brasil, ou seja, poderem exercer o direito à liberdade de ir e vir, sem estarem em condição ilegal no país.
Os membros do Conselho ouviram confissões sobre frustrações por perda de cidadania, até mesmo de poder votar no país onde elas estão trabalhando. “Ter dignidade, liberdade, poder ser cidadã”, disse Virginia sobre os relatos.
Domésticas
A realidade das costureiras se estende ao trabalho doméstico. Além de ouvir trabalhadoras da linha de produção de roupas, a missão do CNDH também ouvir trabalhadores que sofrem maus tratos nas residências onde trabalho como domésticas.
“E no trabalho doméstico, é semelhante. Ela chega para trabalhar na casa da família e tem que morar ali. Fica refém. São também bolivianas, venezuelanas, até filipinas que sofrem violência nas casas onde trabalham e não tem para quem recorrer - não têm para onde correr”, relata Virginia Berriel
Como forma de fiscalização segundo ela, a mesma lei que autoriza a fiscalização nos locais de trabalho em empresas, deveria valer para locais de trabalho residenciais.
Ela cita ainda a Lei maria da Penha. “Precisa ser aplicada em violência doméstica contra trabalhadoras. Uma coisa é trabalhar sem carteira, outra coisa é a violência sofrida por essas mulheres. É uma forma de coibir esses crimes”, ela finaliza.
População de rua
A missão do CNDH também ouviu usuários de drogas da cracolândia em São Paulo para detectar quais as violações de direitos humanos estão sendo praticadas no local e apontar, também no relatório a ser elaborado, soluções e proposições para o acolhimento daquelas pessoas.