Escrito por: RBA
Rapper paulistano falou abertamente sobre temas polêmicos. "O Brasil tem 300 anos de escravidão oficial. Isso jogou toda a memória positiva dos nossos ancestrais no lixo da história"
O programa Hora do Rango, da Rádio Brasil Atual, recebeu no início da tarde de hoje (11) o rapper Emicida, que mesmo em entrevista descontraída ao jornalista Oswaldo Luiz Colibri Vitta não deixou de lado temas polêmicos, como violência urbana e corrupção. "Precisamos, na atual conjuntura do país, estar próximos e cuidar uns dos outros", disse.
Ao falar diretamente sobre o atual cenário político, o músico, natural da zona norte de São Paulo, que chegou aos 10 anos de carreira neste ano, citou um ditado popular. "Para baixo, todo santo ajuda. Estamos passando por turbulências grandes e não acredito que o problema do Brasil será solucionado com respostas simples. Não acredito que o que fizeram com Lula nem arranha na corrupção, ela segue firme e forte. Baseado nisso, temos que conversar, porque a realidade do Brasil é muito complexa", disse.
Sobre o ex-presidente, que se encontra em seu quarto dia de cárcere na Superintendência da Polícia Federal do Paraná, Emicida se mostrou solidário ao petista e disse que ligou para ele um dia antes da sua prisão. O rapper disse que não foi a São Bernardo do Campo durante o movimento de resistência contra o controverso mandado de prisão expedido pelo juiz Sérgio Moro porque estava no Rio de Janeiro em uma agenda de shows.
"Eu liguei para o Lula. Falei para ele sobre a minha música Levanta e Anda. A vida vem em ondas, mas acredito que ele nem precisasse ouvir, já que é uma figura muito forte. Falei que sou uma pessoa muito grata a ele. Foi depois dele que pude refletir que a universidade é um lugar nosso também. Para mim, nós (da periferia) íamos até o ensino médio e, depois disso, o ensino superior era só pra playboy. (...) Com toda essa campanha que a mídia faz para demonizá-lo, achei importante falar para ele algo que nunca tinha dito", disse, ao lembrar que seu irmão, o empresário e músico Evandro Fióti, esteve no ABC ao lado do ex-presidente.
Emicida vai lançar o primeiro DVD de sua carreira no próximo dia 22, intitulado 10 Anos de Triunfo. Ao longo do programa, o apresentador Colibri executou quatro músicas do mais novo trabalho que já estão disponíveis. O show que recheia o DVD foi gravado no dia 20 de novembro do ano passado, e conta com participações especiais de grandes nomes da música brasileira como Caetano Veloso, Vanessa da Mata e Pitty.
A conversa do rap nacional com outros gêneros foi comemorada por Emicida. "Certas barreiras estão caindo, bambeando. O mundo melhorou no aspecto de olhar para a periferia e ver sua criatividade", contou. "Hoje, tanto pessoas que buscam música em vários lugares e também quem a produz veem diferente do preconceito da sociedade que fez com que alguns gêneros fossem limitados a algumas geografias. Mas desde a década de 1990 vemos músicas dos Racionais MCs tocando alto em carro de bacana."
Como disse Emicida em diferentes oportunidades durante a entrevista, a história do Brasil é complexa. Um exemplo é a questão do rap que, mesmo sendo a voz e representatividade da periferia, tem como lugar de origem o centro da cidade. "O berço do hip hop no Brasil é a estação São Bento do Metrô. Ali era um ponto comum, de fácil acesso para pessoas de diversos lugares. Até também por uma estética urbana, a fotografia do lugar também influenciou para o desenvolvimento de um afeto pela São Bento", disse.
Já o movimento mais recente das batalhas e dos slams tem como local mais simbólico outra estação do Metrô. "As batalhas viraram o cerne do hip hop. Na São Bento eram mais batalhas de break, mas na minha geração e uma antes da minha, de gente como Kamal e Marechal, o lugar que acabou se tornando clássico foi a (estação) Santa Cruz (...), lá foi uma espécie de escola para brincar e treinar os versos", disse.
A observação do ambiente urbano como componente da criatividade do hip hop tem ligação com o gosto pessoal de Emicida, que chegou a estudar design. Outro destaque da entrevista evidencia tal predileção pelo tema. Ao retomar sua experiência em visitas à África, o rapper fez paralelos entre o Brasil e Cabo Verde. "Cesária Évora dizia que Cabo Verde é um brasilinho. Gilberto Gil corrigiu e disse que o Brasil que é um 'Cabo Verdão'. É um cenário semelhante com o Nordeste brasileiro. Talvez a diferença maior, o Nordeste é mais sépia e Cabo Verde mais cinza, mais pedras. Você tem uma realidade mais acinzentada. O Nordeste tem o mesmo sol, mas tem outra cor, tons de marrom e vermelho", disse.
Foi de Cabo Verde que veio um dos momentos mais emocionantes do Hora do Rango de hoje. Colibri reproduziu uma mensagem de seu amigo músico e ex-ministro da Cultura do país africano Mário Lúcio. "Desde que conheci o Emicida tivemos uma energia brutal que, além de nos ligar, liga passado e presente. Estamos ligados a nossas raízes de formas profundas", disse. "Como artistas, temos a missão de sermos candeeiros que seguem na frente para guiar."
Em resposta, o rapper lembra da dificuldade de conexão dos negros brasileiros com seu passado africano. "O Brasil tem 300 anos de escravidão oficial. Isso jogou toda a memória positiva dos nossos ancestrais no lixo da história. Nosso país foi e continua sendo canalha com sua história sobre elementos positivos da África. Nascemos num abismo de coisas positivas então tivemos que inventar uma África na cabeça."
Outro momento de emoção da entrevista foi quando Colibri leu mensagens em redes sociais para o artista. A primeira foi de Douglas Martins, que teve seu filho assassinado pela Polícia Militar de São Paulo. "Nunca tive a oportunidade de agradecer pela atenção e carinho que você teve pela história do meu filho Douglas naquela campanha 'Por que o senhor atirou em mim'", disse.
Sentido, o rapper disse que não era questão de agradecer, mas sim de estar junto. "Estávamos em uma semana normal da nossa vida e recebemos a notícia do que tinha acontecido com o filho dele. Ele estava voltando do trabalho e recebeu um tiro no peito de um policial. A última frase que ele disse foi 'Por que o senhor atirou em mim?'. Ele morreu no caminho que eu fazia para ir para a escola quando pequeno. Não foi uma coisa de pensar em manifestação ou mobilização, mas sim de estar junto porque a dor dessa família é a dor que vivemos por perder pessoas para a violência urbana, tanto pela mão do crime quanto pela mão de pessoas fardadas. Então não foi racional, fui para dar um abraço neles e fizemos uma marcha para que esse acontecimento não seja esquecido".
"A pauta se mistura com outros movimentos como o Mães de Maio, que luta por casos parecidos com esse. Ele não tem que me agradecer. Fico feliz dele dizer isso mas o que temos que fazer é nos mantermos juntos para que esse tipo de coisa deixe de acontecer. Infelizmente, o filho dele não vai voltar, mas temos que transformar nosso luto em força", completou.