Escrito por: Vanessa Ramos e Daniel Giovanaz, do Brasil de Fato

Empresários tentam afrouxar norma que protege trabalhadores de frigoríficos

Governo abriu consulta para revisão da NR 36, que estabeleceu requisitos mínimos de saúde e segurança no setor

Bruno Cecim / Fotos Públicas

Empresários do setor de abate e processamento de carnes e derivados sugeriram ao governo Bolsonaro, entre dezembro de 2020 e fevereiro de 2021, uma série de mudanças na Norma Regulamentadora (NR) 36, que estabelece protocolos de saúde e segurança para os trabalhadores de frigoríficos.

A norma foi assinada em 2013, durante o governo Dilma Rousseff (PT), por meio da portaria nº 555 do extinto Ministério do Trabalho e Emprego, e consolidou avanços na prevenção de acidentes e adoecimentos no setor.

“Excesso de burocracia”, “insegurança jurídica” e “aumento dos custos na operação” são alguns dos argumentos apresentados por entidades empresariais ao governo federal para reduzir os direitos e garantias trabalhistas.

“Em geral, as grandes empresas do setor já abarcaram os parâmetros da NR 36 em seus estabelecimentos e na execução de suas atividades, buscando ativamente seu cumprimento”, relata o procurador do Trabalho Lincoln Roberto, integrante do projeto nacional de adequação do trabalho em frigoríficos do Ministério Público do Trabalho (MPT).

“É inconcebível que, no momento da pior crise sanitária da história, os trabalhadores dos frigoríficos, qualificados como essenciais e que continuaram normalmente seu labor para garantir a abastecimento de alimentos à sociedade, tenham retirados quaisquer direitos”, acrescenta.

O setor de frigoríficos registra entre 50 e 60 acidentes por dia. Os casos mais comuns envolvem cortes ou mutilações com faca.-

O MPT está sistematizando os números de acidentes e afastamentos de trabalhadores do setor antes e depois da implementação da NR 36. A ideia é divulgar os dados consolidados antes que a norma seja revista pelo governo federal, para ressaltar a necessidade de preservar os itens que tratam da saúde e segurança dos trabalhadores.

Revisão em agosto

O governo Bolsonaro abriu, em 30 de dezembro de 2020, uma consulta pública às partes interessadas sobre possíveis problemas de regulação da NR 36. O objetivo é subsidiar o processo de revisão da norma, que o presidente promete concluir em agosto de 2021.

A consulta foi aberta para contribuições de empregadores, trabalhadores, governos, profissionais de segurança e saúde no trabalho, inspeção do trabalho e demais entidades representativas.

A revisão deve ocorrer em plena pandemia de Covid-19, que fez disparar a lucratividade do setor e, em paralelo, os riscos de adoecimento.

O segmento registrou 2,8 mil afastamentos por covid-19 no terceiro trimestre de 2020. A única área com mais afastamentos por esse motivo no período foi a dos profissionais de saúde.

Melhorias amplas

A NR é um marco regulatório mínimo de garantia de saúde e segurança dos trabalhadores das indústrias de abate e processamento de carne visando o controle, avaliação e monitoramento dos riscos na atividade. 

“A norma é uma conquista social importante, que trata de melhorias amplas”, enfatiza o médico do trabalho, Roberto Ruiz. “Ela traz exigências sobre o mobiliário, os estrados nos quais os trabalhadores ficam em cima. Fala sobre a proteção ao trabalhador no uso de máquinas, por exemplo, aquelas que tiram a pele de moelas e de miúdos, que são específicas de frigoríficos, além da questão da vestimenta e dos ruídos nos locais de trabalho.”

“Se estes itens forem modificados, teremos um aumento expressivo dos adoecimentos no setor”, completa.

A NR 36 exige do empregador não apenas medidas de proteção, a partir das recomendações da Análise Ergonômica do Trabalho (AET), mas também garante o direito à pausa e aponta para os problemas da utilização de amônia, fluido refrigerante que pode causar intoxicação.

O procurador Lincoln Roberto lembra que o ambiente dos frigoríficos “expõe os trabalhadores a uma verdadeira sinergia de riscos, como ritmo excessivo, riscos de cortes e amputações, ruído, frio constante, exposição a agentes biológicos, deslocamento de cargas, vazamento da amônia, força excessiva, dentre outros.”

A importância da pausa

Nas fábricas, a NR 36 estabeleceu que, após uma hora e quarenta minutos de trabalho contínuo, o trabalhador tem direito a um repouso de 20 minutos, como determina o artigo 253 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

“Um dos principais benefícios da NR 36, sem dúvida, foram as pausas na jornada de trabalho”, afirma o médico. Na prática, se trabalha uma hora a menos na jornada, por conta das pausas.

“Este é um dos pontos que mais incomoda os empresários. Além de as pausas serem o coração da NR, são também o coração do capitalismo. Significa que o trabalhador está sendo remunerado enquanto repousa, dentro da jornada. E o capitalismo não quer isso, porque exige aproveitamento máximo da pessoa”, acrescenta Ruiz.

Ainda sobre a importância das pausas durante a jornada de trabalho, a secretária de Formação da Confederação Brasileira Democrática dos Trabalhadores na Indústria da Alimentação da CUT (Contac-CUT), Geni Dalla Rosa de Oliveira, lembra que tendinite e Lesões por Esforço Repetitivo (LER) são doenças comuns no setor.

“Há muitos anos lidando com essas situações, percebemos o quanto a NR 36 representou um avanço para a preservação da vida dos trabalhadores e trabalhadoras”, ressalta. “O uso da força repetitiva é um fator já sabido para doenças do músculo e dos tendões. Estamos muito preocupados com esta revisão que está em pauta porque sabemos que este governo só mexe para retirar benefícios e destruir toda e qualquer conquista da classe trabalhadora.”

De acordo com o médico Roberto Ruiz, se o direito à pausa for revisto, haverá um prejuízo significativo para o setor e para a saúde do trabalhador.

“Em pouco tempo, a empresa irá dilapidar sua mão de obra. Sem pausa, o corpo não tem tempo para se restabelecer minimamente do ritmo de trabalho. Se mexerem com isso, irão prejudicar todo um sistema de restabelecimento do organismo humano”, alerta.

“Então, é certo que as pessoas vão voltar a adoecer mais, como era antes da NR 36”, completa Ruiz.

O que propõe a ABPA

As duas entidades da classe empresarial que se manifestaram na consulta pública aberta pelo governo são a Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA) e a Confederação Nacional da Indústria (CNI), que representam gigantes como JBS, Minerva e BR Foods (BRF), além de pequenas e médias empresas do setor.

Em resposta ao governo, a ABPA vê problemas no “interfaceamento” da portaria de 2013 com outras NRs que regem o setor industrial. A sobreposição ou contradição entre os itens de diferentes normas causaria “dubiedade, burocratização, retrabalho e insegurança jurídica.”

A Associação aponta “necessidade de simplificação e harmonização da NR 36 com as NRs gerais e específicas revisadas e em processo de revisão.”

Por exemplo, a ABPA propõe que os itens relacionados à gestão de risco na NR 36 sejam desconsiderados, passando a valer as orientações previstas na NR 1 – considerada menos rigorosa pelos trabalhadores.

Algumas exigências da NR 36, segundo a ABPA, “repetem, alteram e até mesmo extrapolam o fixado na CLT.”

Brasil de Fato entrou em contato com a Associação para compreender mais detalhes sobre essa crítica e os riscos que uma alteração da norma traria para a saúde dos trabalhadores.

“A ABPA refuta qualquer afirmação sobre retirada de garantias à segurança dos colaboradores. Ao contrário: as revisões propostas são para melhorar as garantias”, respondeu a entidade, por meio de nota.   

“O setor produtivo tem se manifestado pela necessidade de revisão e harmonização da NR 36, sem abrir mão da imprescindível e necessária segurança dos milhares de trabalhadores da indústria de proteína animal.”

Ainda segundo a ABPA, “passados mais de 7 anos de NR-36, é o momento para corrigirmos o que não se mostrou eficiente, rever aquilo que gerou dúbia interpretação, especialmente em relação às demandas que foram impostas, sem necessariamente haver previsão legal, além de simplificar controles que se mostram desnecessários e ineficientes.”

A Associação ressaltou que mantém boa relação com o MPT e demais órgãos fiscalizadores, e que a revisão pode ser uma oportunidade para “harmonização [da NR 36] com as práticas internacionais de gestão de Segurança e Saúde do Trabalho (SST), como ocorre na União Europeia e outros países.” 

O que propõe a CNI

As sugestões da CNI ao governo também falam em insegurança jurídica, “excesso de burocracia e, por consequência, excesso e aumento dos custos na operação e aplicação da norma”.

Diferentemente da ABPA, a Confederação cita textualmente que a NR 36 “impacta diretamente nos custos (...) para o setor.”

O argumento econômico é usado mais de uma vez para tentar pressionar o governo sobre a necessidade de alteração de alguns pontos da norma. 

Representantes da CNI mencionam “redução da produtividade diária e, por consequência, redução da competitividade da indústria de abate e processamento de carnes e derivados”, com “possível comprometimento do nível global de empregos no setor.”

“O ambiente, portanto, é de incertezas e insegurança jurídica acerca da interpretação e aplicação da norma, com potencial de geração de conflitos. Ademais, gera duplicidade no atendimento, impactando em custos elevados e retrabalhos, sem agregar valor para a segurança dos trabalhadores”, acrescenta o texto enviado pela Confederação.

“A norma traz, como princípio, requisitos para eliminar ou evitar doenças decorrentes do trabalho extenuante verificado nas grandes linhas de produção automatizadas, mas é dirigida indiscriminadamente a todas as demais indústrias da cadeia, seja um pequeno aviário, uma fábrica de linguiças ou apenas processadoras de carnes”, completa.

Integrantes da CNI também citam as pausas e dizem que as exigências da NR 36 sobre o tema “não são compatíveis com o processo produtivo de carnes.”

Por fim, a Confederação chama atenção novamente para os impactos econômicos, “com consequente redução no número de empregos, sem contribuir para a segurança e saúde dos trabalhadores.”

A reportagem questionou a CNI especificamente sobre esse último aspecto, ressaltando as contribuições da NR 36. A assessoria respondeu por meio de nota, reafirmou a necessidade de mudanças na norma, mas afirmou que a intenção não é flexibilizar regras de saúde e segurança:

“As sugestões encaminhadas pela CNI no processo de tomada de subsídios para a revisão da NR-36 se pautam pelo objetivo de modernizar, desburocratizar e simplificar as NRs sem prejuízos à saúde e à segurança do trabalhador, bem como o de harmonizar a referida norma com outras NRs já revisadas, como a NR 01, de forma a evitar sobreposições ou conflitos com outros comandos normativos.”

Avaliação do MPT

Sobre o "interfaceamento" com outras NR que regem o setor industrial como um todo, Lincoln Roberto argumenta que “a necessidade da existência de uma norma específica de saúde e segurança para o setor decorre justamente diante dos maiores riscos específicos existentes na atividade.”

O procurador ressalta que o respeito à norma não impacta na competitividade.

“Ao ditar um padrão regulatório mínimo a ser seguido por todos, [a NR 36] evita a concorrência desleal”, analisa.

“Os custos oriundos da NR 36 já restam incorporados pelas empresas, e os trabalhadores não podem ter sua dignidade humana reduzida em prol de ganhos econômicos. É inaceitável que qualquer empresa queira a existência de uma norma que possa adoecer pessoas”, completa.

Preocupações

Em março, mês de luta das mulheres, confederações e entidades sindicais do ramo da alimentação realizam, em parceria com a Regional Latino-Americana da União Internacional dos Trabalhadores da Alimentação (Rel-Uita), uma Campanha Internacional em Defesa da NR 36.

A ideia é ampliar o diálogo com outros países e pressionar o governo brasileiro a manter o rigor nos protocolos de saúde e segurança nos frigoríficos.

O integrante do projeto nacional de adequação do trabalho em frigoríficos reforça a preocupação com o processo de revisão da norma.

“Há necessidade de muito cuidado na revisão da NR 36. A busca do setor deve ser em se tornar uma referência em prevenção de acidentes de trabalho e não ser associado a processos de trabalho que adoeçam e tirem vidas de pessoas”, finaliza.

Brasil de Fato apresentou os questionamentos à Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia, responsável pela revisão das normas. Não houve resposta até o fechamento desta reportagem.

Edição: Vinícius Segalla