Escrito por: Andre Accarini
BBC Brasil denuncia empresas que adotam o chamado ‘kit Covid-19’ para suposto tratamento de seus trabalhadores. Os medicamentos não têm eficácia científica comprovada e podem provocar vários problemas à saúde
A negação da ciência e das recomendações das autoridades sanitárias, como a Organização Mundial da Saúde (OMS), atinge patamares cada vez mais perigosos. Uma reportagem da BBC News Brasil, publicada nesta quarta-feira (31), denuncia que várias empresas vêm oferecendo o suposto tratamento precoce contra Covid-19 aos seus funcionários.
O kit-Covid, como é chamado, é composto por medicamentos como a Ivermectina e a Hidroxicloroquina, defendidos aberta e veementemente pelo presidente Jair Bolsonaro (ex-PSL) como forma de evitar a doença, mas cientistas, médicos e autoridades de saúde reforçam que não há nenhuma comprovação científica de que tenham eficácia. Ao contrário, podem causar ainda mais danos à saúde. Médicos dizem que vários pacientes infectados que estão chegando aos hospitais em estado grave usaram alguns dos medicamentos do kit. Alguns já estão, inclusive, na fila de transplante de fígado em São Paulo.
Para a Secretária de Saúde do Trabalhador da CUT, Madalena Margarida Silva, “é lamentável que em uma situação de crise grave como a que vivemos, com pessoas com medo de contrair o vírus, empresas se aproveitem para tomar esse tipo de atitude”, ou seja, forcem trabalhadores a aderirem a tratamentos que não evitarão a infecção, pelo contrário, ainda podem deixar sequelas graves.
De acordo com a dirigente, a CUT já está orientando seus sindicatos a acolherem denúncias de trabalhadores que se sintam lesados com tais ações, bem como a intensificarem a fiscalização para que essas empresas sejam denunciadas ao Ministério Público do Trabalho (MPT).
Na reportagem da BBC, representantes das empresas se defendem argumentando que o tratamento não é obrigatório. Mas, juridicamente, mesmo sob a alegação de que a adesão é voluntária, a empresa é responsável e pode ser condenada por danos morais e materiais por qualquer evento danoso à saúde dos trabalhadores, causado pelo consumo dessas medicações. A afirmação é da advogada especialista em Direito do Trabalho, Luciana Baptista, do escritório LBS Advogados.
“A empresa pode inclusive ser responsabilizada por dano moral coletivo por ter colocado a vida de trabalhadores em risco. Caso a empresa esteja distribuindo medicação para tratamento precoce, trabalhadores devem denunciar ao sindicato ou ao MPT para as providências cabíveis” diz a advogada.
Luciana reforça que são obrigações básicas das empresas seguir os decretos de funcionamento de estabelecimentos comerciais de cada localidade, organizar e por em prática as regras de isolamento e distanciamento social para os trabalhadores presenciais e colocar trabalhadores em home office quando for possível.
A médica especializada em Medicina do Trabalho Dra. Marcia Bandini, professora do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, alerta que estamos diante de uma doença muito nova, de apresentação variada, com casos que vão desde os assintomáticos até os graves.
Ela explica que 80% dos casos são muito leves, mas a ciência ainda está aprendendo sobre a doença. De acordo com a médica, “existe um pensamento de que quanto mais cedo a pessoa identificar e tratar a doença, será melhor para o paciente”. Mas esse pensamento, ela completa, nos leva a uma série de equívocos, como os já observados durante a pandemia – um deles o tratamento precoce.
“Não conhecemos a doença e por isso não sabemos o tratamento adequado. Os casos se acumulam e as pessoas começam a tentar ‘um pouco de tudo’. Mas há mais de 120 mil estudos feitos em um ano de pandemia e de todos eles só há uma perspectiva terapêutica que se mostrou um pouco mais promissora – é o uso de corticoides como a dexametazona, mas ainda assim não pode usar desde o começo, somente em alguns casos”, afirma a Dra. Marcia Bandini.
Ela afirma que todos os outros medicamentos que foram estudados até agora não têm comprovação de eficácia. Os estudos mostraram também que o uso indiscriminado provoca dois efeitos adversos. “Ou vai fazer mal porque vai tomar sem acompanhamento ou porque toma muitas doses”, ela completa.
A médica cita um caso na Unicamp, do diagnóstico de hepatite grave medicamentosa em paciente com Covid-19, provocada pelo uso da Ivermetcitna. “E não foi pelo uso de uma vez. É porque a pessoa tomou várias vezes”.
A bula da Ivermectina, medicamento cuja finalidade é paralisar e eliminar vermes no organismo, indica tratamento com dose única para a maioria dos casos. Ouvida pela BBC Brasil, na contramão dos próprios fabricantes, a Dra. Eliane Painini, contratada pela empresa Tecnocuba, de São Paulo, afirmou que “o mundo deveria estar tomando Ivermectina quinzenal como profilático”. A médica da empresa ignora os casos de pacientes com problemas de saúde porque usaram indevidamente o medicamento.
Uma das fabricantes da Ivermectina, a americana Merck, que inclusive desenvolveu o medicamento, já afirmou que não existem evidências sobre a eficácia do medicamento contra a covid-19.
Mas o risco do uso é ainda maior. A Dra. Marcia Bandini explica que os efeitos têm duas frentes. “As pessoas podem ter efeitos adversos pelo uso e por outro lado, há a falta de segurança já que elas podem considerar que estão se tratando, por isso deixarem de se proteger e proteger quem está por perto”, se referindo a ‘relaxar’ no que diz respeito a seguir protocolos de segurança como o isolamento social, o uso de máscaras e álcool gel, etc.
A médica aponta como consequência disso a intensificação da transmissão do vírus. Quando isso ocorre, maior é a chance de surgirem novas cepas. Outra consequência é o agravamento da doença, já que a pessoa pode demorar a procurar assistência médica, o que é fundamental.
A Dra. Marcia diz ainda que no atual momento, mesmo com milhares de estudos, não há como afirmar que a cura tenha sido pelo uso de determinados medicamentos ou se foi pelo ‘curso natural da doença’, já que em 80% dos casos, o paciente com Covid-19 se cura sozinho.
Ela diz também que quem defende o tratamento precoce cruza a linha do bom senso e da ética.
“Essa afirmação que muitos costumam dizer ‘pela minha experiência o tratamento é eficaz’ não pode ser dita porque a maioria dos casos se resolve sozinho e as recomendações das autoridades sanitárias não corroboram com a eficácia do tratamento precoce”, afirma a Dra.
De fato, os estudos feitos com esses medicamentos têm mostrado resultados inconclusivos sobre o uso. Um desses estudos foi publicado recentemente pela OMS e compara pacientes que usaram a Ivermetcina e pacientes que usaram placebo. “Os resultados mostram que não muda o desfecho”, ela diz.
Isso significa que nos dois grupos houve casos semelhantes de agravamento da doença e de cura. Por isso, a OMS não recomenda. Ou como diz a médica, “recomenda contra o uso”.
São três os grupos de pessoas que se submetem ao tratamento precoce. As que se automedicam, as que procuram serviços médicos em locais que adotam protocolos sem comprovação científica e, por fim, os trabalhadores de empresas como as denunciadas pela reportagem da BBC.
Para a médica Marcia Bandini, não é admissível, mesmo que haja a boa intenção de proteger pessoas, que se cruze os limites éticos e científicos.
O Conselho Federal de Medicina (CFM), ano passado, publicou uma recomendação que adverte sobre a falta de comprovação científica dos medicamentos, mas que o tratamento pode ser prescrito desde que o paciente seja devidamente esclarecido e concorde com os riscos. Porém, não é o que recomendam várias associações médicas que estão questionando o conselho da categoria.
Levando em consideração as relações de trabalho em que os funcionários estão em constante ameaça de perder o emprego, trabalhadores, ainda que de forma velada, podem se sentir obrigados a aderir aos programas das empresas.
“Estamos diante de verdadeiros experimentos humanos, onde esse consentimento exigido não é necessariamente livre e esclarecido”, diz a médica.
A Dra. Márcia Bandini orienta a seguir a literatura cientifica atual sobre o que funciona (e o que não funciona) para enfrentar a Covid-19.
“O que funciona são medidas não farmacológicas como higiene pessoal, isolamento, distanciamento, bloqueio epidemiológico e protocolos de segurança”, ela diz.
Outra recomendação da médica é que ao detectar sintomas, se possível fazer a oximetria, ou seja acompanhar o nível de oxigênio e se for menor que 94, procurar assistência.
Esse exame é muito simples e pode ser feito em casa com um aparelho chamado Oxímetro, vendido por cerca de R$ 60,00 em farmácias e magazines. Basta colocar no dedo indicador para medir o nível de oxigênio.
A médica diz ainda que informações oficiais sobre o tema estão disponíveis em canais oficiais como a OMS, inclusive em português.
“Informação oficial está disponível. A melhor informação não é do tio do churrasco no Facebook, ou no grupo da tia no WhatsApp”, ela pontua.
*Edição: Marize Muniz